A Academia dos Humildes e Ignorantes (1758 – 1770): as letras e

  • Pedro F. Catarino LusA Academia dos Humildes e Ignorantes (1758 1770): as letras e asluzes para o homem comum.Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2009
  • 2Autor: Pedro F. Catarino Lus.Ttulo: A Academia dos Humildes e Ignorantes (1758 1770): asletras e as luzes para ohomem comum.Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009.Dissertao de Mestrado em Histria Moderna: Poderes, Ideias eInstituies, apresentadaFaculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientaoda Professora DoutoraIsabel Ferreira da Mota.
  • 3NDICE1. Introduo ….52. Academias imaginrias e sociabilidade intelectual ficcionadana literatura setecentista73. A Academia dos Humildes e Ignorantes ..163.1. As conferncias da academia: temas e fontes …203.2. Do aplauso crtica: a opinio pblica e o bem comum ..553.3. Do anonimato para a luz: Frei Joaquim de Santa Rita……613.4. Impresso e Publicao: o negcio de um sucesso literrio .704. Consideraes finais ….795. Fontes e Bibliografia …..84Anexos …..92
  • 4Abreviaturas UtilizadasAHI Academia dos Humildes e IgnorantesANTT Arquivos Nacionais / Torre do TomboBGUC Biblioteca Geral da Universidade de CoimbraBNL Biblioteca Nacional de LisboaNota sobre metodologia utilizada em transcries: normalizou-se aescrita para a linguagemcontempornea, mantendo-se nalguns casos os nomes ou ttulosconforme o original.Todas as citaes, transcries ou referncias obra Academida dosHumildes e Ignorantesde Joaquim de Santa Rita, seguem a terminologia [AHI, T_, C_,p._]: AHI Academia dosHumildes e Ignorantes; T N do Tomo, C N da Conferncia; p. pgina.Para umarelao entre o ano exacto de publicao de cada conferncia outranscrio consultar tabelaem anexo relativa s datas de impresso da obra.
  • 51. IntroduoIGNORANTE. Falto de cincia. Que no tem letras.1O universo literrio do sculo XVIII deixou-nos relquias etesouros do imaginriohumano, que impressos pelo vapor tipogrfico do sculo,alimentando vidos comerciantes delivros indiferentes aos valores contidos nas mercadorias quevendiam, permitem-nos hojeolhar para um magnfico espao de ideias representativas de umasociedade que escreveu oprefcio dos tempos modernos. algures nesse espao de ideias que apresente dissertaoencontrou as suas musas, pretendendo aqui inaugurar dois temasno campo da Histria dasIdeias e da Cultura. Por um lado mostrar um campo da literaturaportuguesa setecentista quetransportou a sociabilidade intelectual da poca para a fico. Poroutro, trazer luz osresultados de um processo de investigao que teve como objecto deestudo um dos expoentesmximos dessa fico literria, a Academia dos Humildes eIgnorantes.Seria impossvel desassociar estes temas a duas matriasamplamente estudadas nocampo historiogrfico, o movimento filosfico das luzes ouIluminismo, e a Repblica dasLetras, sobretudo porque o que ir aqui ser tratado apresenta-secomo uma materializaoprtica desse iderio filosfico. Enquadrado tambm na temtica daHistria do livro, dasimpresses e do negcio livreiro, da crtica e da opinio pblica, eda Histria das academiasliterrias e cientficas que comearam a surgir por toda Europadesde a segunda metade dosculo XVI.Para aqueles que colocam o movimento das luzes em Portugal comoum produto deestrangeirados, para aqueles que o criticam por ter sido umreservado movimento de elites,para aqueles que o catalogam depreciando-o e tambm para os quese preocupam em ter umiluminismo portugus, prope-se aqui uma expresso de um deiluminismo popular, assentena obra de um homem que decidiu criar uma academia fictcia,recorrendo ao engenholiterrio. Numa poca em que as academias estavam em voga,renascendo em nome daHistria ou da Literatura, so inmeros os nomes das novasacademias de eruditos do sculoXVIII. Mas todas elas com uma particularidade, as suas portasapenas se abriram para umaestrita elite social de uma sociedade de classes, que mergulhadanum certo elitismo intelectualtraiu um dos objectivos da filosofia do esclarecimento, o delevar as luzes da razo a todos.nessa particularidade que a Academia dos Humildes e Ignorantesse distingue de todas asoutras, pois era dedicada a um pblico muito especial, a umaoutra classe, mais inferior, masmuito maior. Para os humildes e ignorantes, para os pobres eiletrados, para os trabalhadores,1 BLUTEAU, Raphael, Vocabulrio Portuguez e Latino, Tomo IV,1713, p. 43.
  • 6abrem-se as portas do saber ao homem comum. Frei Joaquim deSanta Rita fundou assim asua academia para o povo.Uma obra literria setecentista com o objectivo de compendiar oconhecimento, eoferecer uma histria universal, inserida num movimento literriobastante comum na poca,inspirado pelos enciclopedistas, num exerccio de divulgao deconhecimentos e sobretudoda nova Filosofia Natural, onde livros e peridicostransformaram-se em canais detransmisso e sobretudo de vulgarizao de ideias. Ideias tocadaspelos ideais dos homens dasluzes, que ao mesmo tempo alimentaram um negcio bastantelucrativo.O objectivo central deste trabalho ser assim o de revelar umaAcademia dosHumildes e Ignorantes, enquanto obra literria portuguesa polmicado sculo XVIII.Procurando sobretudo trazer novas luzes sobre os seus contedos,e sobre o seu ignorado maserudito e informado autor. Neste sentido a obra ser analisadacomo uma materializao doesprito das luzes, enquanto compndio do saber oferecidoinvulgarmente ao homem comum.Esta obra, atravs da representao sociolgica de uma academiaimaginria, com o objectivoenciclopdico de deter nas suas pginas os mais diversos temas,foi alvo de crticas, discussopblica, polmicas, intrigas, e interesses econmicos. O queampliou este estudo para umaperspectivao da obra enquanto produto de um mercado livreiro emforte desenvolvimento,atravs da anlise de dados relativos sua publicao, impresso ecomercializao, queadiantando algumas concluses parece ter sido um sucessoliterrio, no s pelas suasinmeras reedies, como tambm pelo nmero de coleces quesobreviveram at hoje.
  • 72. Academias imaginrias e sociabilidade intelectual ficcionadana literaturasetecentistaAcademia nome, que geralmente se d ao lugar, em que florescem ascincias, ou artes,e a todo o ajuntamento de homens doutos, que especulam, ensinam,e adiantam as mesmasartes ou cincias. Os Gregos foram os primeiros inventores delas,e causa de que osRomanos, que foram seus discpulos, fundassem depois muitas, aque tambm na Europachamaram Universidades, deixando o nome Academia como prprio spara as Juntas doshomens doutos, que no ensinam discpulos, e s cuidam noadiantamento das cincias,artes, ou verdade das histrias com os estudos, e escritos. 1O charme literrio e cientfico do sculo XVIII ficou registado nasmemrias do tempopelas inmeras obras e escritos, frutos de um gnio criador, dohomem das letras inspiradopelas luzes. Desde os finais do sculo XVII comeam a proliferardiversas academias deintelectuais e diletantes, das artes e das letras, e mais tardeda cincia. A estas academiaspodemos ver sempre associado o nome de ilustres eruditos,personagens carismticas,reunidas por uma paixo comum: o amor ao conhecimento, s letras es artes. Unidos pelacuriosidade, pela vontade de resolver os mistrios da vida e domundo, do universo e dahumanidade, mistrios esses que desde os princpios dos temposassombram a mente dohomem. Inspiradas pela Academia de Plato, onde um membro poderiaseguir qualquercaminho do conhecimento no lhe sendo imposto nenhum programafixo de aprendizagem,vemos nascer agora grupos de intelectuais, que juntos por essavontade de partilha de ideias ede discusso de temas, como que se de nada servisse a erudio nohavendo com quem apartilhar, deram origem a um interessante fenmeno desociabilidade intelectual, que assumiudiversos contornos e grandezas. Tertlias, sales de leitura,botequins, livrarias, bibliotecas,universidades, academias, ou lojas manicas, todos jardins doconhecimento, mais ou menosinstitucionalizados, mais ou menos discretos, mais ou menosprivados, tiveram em comumserem um espao dimensional de relacionamento de indivduos e deconsubstanciao deideias que firmaram uma crescente crena ideolgica da primazia darazo. Esta proliferaode espaos de interaco intelectual, trouxe uma novaconsciencializao cientfica e odesabrochar de uma nova filosofia natural, a constante einquieta curiosidade humana pordesvendar o universo, por via de um racionalismo inerente ou deuma mera paixo pela arte, aelevao do conhecimento a uma nova divindade, uma luz exaltadapara fulminar as trevas1 [AHI, T7, C16, p. 191].
  • 8que mergulharam o mundo num negro lago de mitos e medos, criaramum novo campo deideias durante o sculo das luzes.Surge assim representada em diversas obras, uma sociabilidadeintelectual da poca,imaginada e recriada pelo artfice literrio, colocando as novascorrentes de um pensamentoiluminado no papel de personagens intelectuais interagindo emespaos sociais. Estas obrasunem-se curiosamente por um sentido prtico das luzes atravs deuma tentativa semprepresente de compilao do conhecimento, com a aspirao decontribuir para a compreensodo mundo, da vida e do universo, elevando a Histria e aFilosofia Natural a um novopatamar. atravs da representao cnica de dilogos entre eruditos,palestras, confernciasou aulas que podemos observar um conjunto de obras de autoresportugueses a dar vida sletras e s luzes. Desde a Academia dos Humildes e Ignorantes1 deJoaquim de Santa Rita,tema central deste estudo, aos Estrangeiros no Lima2 de ManuelGomes de Lima Bezerra de1785 e 1791, Academia Singular e Universal do Frei Jos de JesusMaria de 1737, passandopela Palestra Admirvel3 de Jos ngelo de Morais, que iniciou asua publicao em 1759, oua sublime Recreao Filosfica4 do erudito Padre Teodoro deAlmeida, cujo primeiro tomofoi publicado em 1751. Estas obras unem-se tambm por encarnaremum esprito de partilhade ideias e de democratizao do conhecimento, pretendendo fazerchegar a sua obra atodos, forma tambm de educao do povo, combate ociosidade e emltima instnciadesenvolvimento da nao. Em conjunto representam um movimento devulgarizao dosaber, atravs de uma divulgao sistemtica de todo o tipo deassuntos.1 Ttulos completos: Academia dos humildes, e ignorantes: dialogoentre hum theologo, hum philosopho, umermito, e hum soldado, no sitio de Nossa Senhora da Consolao:obra utilissma para todas as pessoasecclesiasticas e seculares que no tem livrarias suas, nem tempopara se aproveitar das pblicas…., Tomos I aVI, Lisboa de 1760 a 1762; Academia dos humildes, e ignorantes:no sitio de Nossa Senhora da Consolaosua protectora, dialogo entre hum theologo, hum letrado, umfilosofo, hum ermito, hum estudante, e humsoldado, Tomos VII e VIII, Lisboa, 1765 e 1770. 2 BEZERRA,Manuel Gomes de Lima, Os Estrangeiros no Lima: ou conversaoenseruditas sobre varios pontosde Historia Ecclesiastica, Civil, Litteraria, Natural,Genealgica, Antiguidades, Geographia, Agricultura,Commercio Artes, e Sciencias Real Oficina da Universidade,Coimbra, Tomo I 1785 e Tomo II 1791. 3 MORAIS, Jos ngelo de,(pseud. Joz Maregelo de Osan), Palestra Admirvel, ConversaoProveitosa, Enoticia universal do Mundo. Distribuda por nmeros e semanas.Para emprego da ociosidade, desterro damelancolia, e lio para recrear, e instruir a todo o estado depessoas, impresso na Oficina de Francisco Borgesde Sousa, n I ao n XII, Lisboa, 1759; n XIV ao n XVIII, Lisboa,1760. 4 ALMEIDA, Teodoro de, Recreaso Filozofica, ou dialogo sobrea Filozofia Natural, para instruo depessoas curiozas, que no frequentaram as aulas, 10 Tomos,Lisboa, [1751- 1752; 1757; 1761-1762; 1785;1792-1793; 1800].
  • 9A Palestra Admirvel, Conversao Proveitosa, e Notcia Universal doMundo,prope ser uma obra para emprego da ociosidade, desterro damelancolia, e lio para recreare instruir todo o estado de pessoas. Impressa em folhetos de 8pginas, sai o primeiro nmeroimpresso em 1759, um ano aps o lanamento da AHI e na mesmaoficina de FranciscoBorges de Sousa. Os seus folhetos eram todos paginados de 1 a 8,sem uma paginaocontnua que seria o normal neste tipo de obras para secompilarem os diversos folhetos emtomos. Teve uma vida curta, terminando a sua impresso no nmero18 em 1760. Apesar de ottulo da obra apresentar alguns objectivos universalistas comoos acima mencionados, o seucontedo fica muito aqum do proposto. As palestras vo ganhandovoz de uma personagemde nome Camilo, que era um homem nobre de sangue, erudito,perito no estudo das letras epossuidor de uma abastada fortuna. Um nobre que gostava mais davida ociosa e descansadado que empregar o seu tempo em algo de til, passando os seusdias em jogos, banquetes,bailes e outros divertimentos. Mas como era inclinado aoslivros, no se esquecia totalmenteda sua lio1 at que um certo dia ao ler um livro descobriu que aociosidade era algo dedemonaco, e inspirado por um certo homem, decidiu largar a Cortee ir passar o resto da suavida num retiro humilde, na Vila de Serpa no Alentejo. Foi assimque nos seus passeios pelorio Guadiana comeou a passar as tardes com quem com ele quisesseaprender e partilharconhecimentos. Estas tardes transformam-se em palestras que sevo assim desdobrando navoz deste Camilo e dos seus ouvintes, onde o tema dominante acidade e imprio de Roma,apresentando Ovdio, Homero e Virglio como as suas principaisfontes. No obstante olimitado contedo e curta existncia destas palestras admirveis, acrtica ociosidade e aosvcios da nobreza est bem presente.O autor Jos ngelo de Morais2 escreveu tambm outras duas obras,igualmenteimpressos em folhetos de 8, de carcter semelhante, mas sem essacomponente de1 MORAIS, Jos ngelo de, Palestra Admirvel, Conversao Proveitosa,E noticia universal do Mundo (),Lisboa, 1759, N1, Semana 1, p.2. 2 Assinava as suas obras com opseudnimo Joz Maregelo de Osan, anagrama do seu nomeverdadeiro,ANDRADE, Adriano da Guerra, Dicionrio de Pseudnimos e Iniciaisde Escritores Portugueses, Coleco BN,1999, p. 154. Alm das obras mencionadas foi tambm autor de:Despertador de Marte, instrues militares aosportuguezes, Lisboa 1760; Semanas proveitosas ao viventeracional, ou modos para curar a alma enferma, eadquirir sciencia dos segredos da natureza repartido em trintasemanas, Lisboa 1760 (que segundo o Catlogode Miscelneas da BGUC no passava de um ttulo); Eccos que oclarim da fama d: Postilho de Apolo,montado no pegazoLisboa, 1761-1762, 2 vols; in FONSECA, Martinhoda, Subsdios para um diccionrio depseudonymos, iniciaes e obras de escriptores portuguezes, Typ.Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1895,p.48.
  • 10sociabilidade ficcionada que aqui se pretende ilustrar. Foramelas os Mdicos Perfeitos1, e oDiscpulo Instrudo2, ambas obras com o propsito de educar einstruir o leitor. Pela anlisedas datas de impresso desta ltima e comparando-as com osfolhetos da Palestra Admirvel,fica a ideia de que ambas tero sido impressas e publicadassimultaneamente.Foi consultado tambm um outro folheto intitulado O OccultoInstrudo3, de autorannimo. Este apresenta-se como um objecto de divertimento,reduzindo em breve espao elimitado volume as mais celebres histrias e factos, que sejamais fcil a todos alcana-las4.O autor deste ttulo faz um apelo crtica inteligente e temperada,alertando para anecessidade e importncia dos folhetos annimos darem fora everdade a essa voz crtica. Noseu primeiro nmero refere que recorrer sempre que necessrio aodilogo, pois este era omtodo seguido por homens de grande literatura:Muitas vezes por se fazer mais fcil a percepo se escrever emforma de Dialogo, istoprincipalmente ter lugar na Matemtica, e Fsica, conforme amatria o pedir. Este mtodoseguido de homens de grande literatura. O infatigvel AthanasioKirker seguiu este estiloem algumas das suas excelentes obras, e nas lies Fsicas doAbbade Nollet (alm deoutros) temos este exemplo; nem isto novo na Lngua Portuguesa,porque na estimadssimaRecreao Filosfica se observa o mesmo que referimos.5Passemos ento a essa obra mencionada no Oculto Instrudo, aRecreao Filosficado padre Teodoro de Almeida. Em 1751 lanado o primeiro volumedesta enigmtica obra,iniciado com um discurso preliminar sobre a Histria daFilosofia, onde o autor tece umaexplicao sucinta das 5 primeiras academias que tero existido. Aobra dividida em Tardesde recreao, que se iam passando numa casa com vistas para o mar,entre as conversas deTeodsio e Eugnio, eruditas personagens. O objectivo proposto porTeodoro de Almeida1 MORAIS, Jos ngelo de, (pseud. Joz Maregelo de Osan), Os MdicosPerfeitos: ou Novo Methodo de Curartodas as enfermidades, descoberto, e explicado pelos Mestres demais subtil engenho, e applicado aosenfermos, pelos Doutores mais sbios., Impresso na Oficina deFrancisco Borges de Sousa, N VI, Lisboa, 1759. 2 MORAIS, Jos ngelode, (pseud. Joz Maregelo de Osan), O Discpulo Instrudo pelosMestres mais Sbiosnos segredos Natureaes das Sciencias, distribudo por semanas, emperguntas, e respostas, nas quaes ters,curioso leytor, no s lio, que te recree o animo, mas tambem (compouco trabalho) adquirirs huma cabalnoticia dos naturaes segredos, que com tanto desvelo, e estudoprocuraro indagar os antigos, e modernosEscritores., Impresso na Oficina de Francisco Borges de Sousa,Semana Sexta, Lisboa, 1759. 3 [Annimo], O Occulto Instrudo, quepara licito divertimento e honesta recreao se h de publicardivididoem diferentes partes, 18 Nmeros, na Oficina de DomingosRodrigues, Lisboa, 1756-1757. 4 Ibidem, N1, p.1. 5 Ibidem, N1,p.7.
  • 11tambm a divulgao de conhecimentos teis a todas as classes deindivduos e ser dentro daesfera de anlise deste estudo o exemplo mais prximo da AHI emuito provavelmente umadas suas principais fontes de inspirao.1Assiste-se assim a um tratamento eloquente entre as personagens,carregadas de umaerudio intelectual, interessadas em todos os assuntos, dasnovidades da corte, do estado danao, da poltica, das notcias do estrangeiro, da sociedade emgeral, descendo sempre aosgrandes assuntos da filosofia, da Histria e da cincia. O autor,sempre atento aos progressoscientficos soube habilmente criar um espao de aprendizagem nouniverso literrio, com aconstante preocupao de tornar o saber acessvel e fcil. Expressopor exemplo na sua crticaao recurso da lngua latina por parte dos eruditos para discutiras matrias da cincia,dificultando o acesso ao conhecimento a todos os que nodominavam o latim, parecendo queesses mesmos intelectuais faziam de propsito para ocultar asverdades. A queda do latimsem dvida uma preocupao das luzes, pois representava um passoimportante para tornar acincia e a filosofia acessvel a todos. Sobre a utilizao do latimnas aulas o autor escreveu:mais serviam de confundir, que de instruir, mais de escurecer averdade, que de a dar aconhecer. 2A Escola da Doutrina Crist3 do padre jesuta Joo da Fonseca, obraimpressa emvora no ano de 1688, reeditada mais tarde em 1750, apresenta-secomo uma recriaoliterria de uma escola, onde o autor recorrendo formadialogstica, sobretudo em perguntase repostas, coloca em cena quatro personagens: Marcelino umfilsofo, Diodoro um telogo edois estudantes supostamente a assistir aos dilogos desses doiseruditos. A obra temessencialmente um carcter religioso e cumpre um programa deensinamento cristo4.1 () cria uma espcie de matriz alternativa ao espritoenciclopdico, condensando um vasto leque desaberes, tcnicas e ensinamentos filosficos expurgados dosperigos ideolgicos do projecto francs e expostospor meio de uma engenhosa fabricao de situaes de aprendizagemilustrativas e ldicas in ARAJO,Ana Cristina, A Cultura das Luzes em Portugal Temas e Problemas,Livros Horizonte, 2003, p. 16. 2 ALMEIDA, Teodoro de, RecreasoFilozofica, ou dialogo sobre a Filozofia Natural, para instruodepessoas curiozas, que no frequentaram as aulas, Tarde Primeira,tomo I, 1751, p.3. 3 FONSECA, Joo da, Escola da Doutrina Christam,em que se ensina o que he o obrigado a saber o Christam.Ordenada por modo de Dialogo entre dous Estudantes hum Filozofo,por nome Marcelino, & outro Theologo,por nome Diodoro. Com exemplos accomodados s materias, que setratam…, Oficina da Universidade, vora,1688, obra tambm reeditada em 1750. 4 Esta obra foi analisadaluz da conceptualizao do conceito de pobreza nos finais do sc. XVIIe incios dosc. XVIII, com referncia ao conceito de bem-aventuranas dado porJoo da Fonseca no sentido dedesprendimento das riquezas materiais como forma de elevaoespiritual, na obra: LOPES, Maria Antnia,Pobreza, Assistncia e Controlo Social. Coimbra (1750 1850),Viseu, 2000, Vol.1, p.49.
  • 12Outro exemplo o Governo do Mundo em Seco1 obra impressa emLisboa no ano de1748, da autoria de Manuel Jos de Paiva (1706 – ?), onde tambmeste recorre ao dilogo depersonagens eruditas, nomeadamente um Letrado, o seu Escrevente,e as mais pessoas que sepropuserem. O seu autor fala nos perigos da riqueza e nacondenao dos que procuramenriquecer, louvando a maior segurana dos que vivem remediados ena pobreza.2A Academia Singular e Universal3 do Frei Jos de Jesus Maria de1737, podertambm ser includa nesta abordagem, pois apesar do seu carcterreligioso, no deixa de seapresentar como um projecto de uma Academia Universal, inspiradana Academia de Plato,com intenes de compreender todos os estados, operaes e modos devida humanos,cincia, poltica e Histria. No entanto recorre essencialmente aostextos bblicos e a fontesteolgicas ficando muito aqum do projecto que prenuncia.Incluiremos tambm neste grupo de academias imaginrias, outrasduas academiasreferidas no estudo de Joo Palma Ferreira como pardiasacadmicas. A saber, a Academiados Sovelantes4 e a Academia dos Fleumticos. Esta ltima surge napublicao Folheto deambas Lisboas, de 1730, onde se simulava em estilo de pardia umaacademia na rua doCorreo5. Merece tambm meno a obra Corte na Aldeia e Noites deInverno, de 1619 de1 PAIVA, Manuel Jos de, (Pseud. Silvestre Silverio da SilveiraSilva), Governo do Mundo em Seco, palavrasembrulhadas em papis, ou escritorio da razam, exposto noprogresso de hum Dialogo, em que sointerlocutores hum Letrado, o seu Escrevente, e as mais pessoasque se propuzerem., Oficina de Francisco LuizAmeno, Impressor da Congregao Cameraria da S. Igreja de Lisboa,Lisboa, 1748. 2 Sobre este assunto ver LOPES, Maria Antnia,Pobreza, Assistncia e Controlo Social. Coimbra (17501850), Viseu, 2000, Vol.1, p.88. 3 MARIA, Jos de Jesus, AcademiaSingular, e Universal, Histrica, Moral e Politica, Eclesistica,Scientifica,e Chronologica, Tomo nico, Oficina de Pedro Ferreiro, Impressorda Augustissima Rainha N. Senhora,Lisboa, 1737. 4 Sobre esta Academia nada se adianta alm doreferido no estudo mencionado. Ter sido uma pardia modadas academias que surge referida num documento manuscrito dosculo XVI. Ver: FERREIRA, Joo Palma,Academias Literrias dos Sculos XVII e XVIII, Lisboa, 1982, pp.113 114. 5 Folheto de Ambas [Gravura contendo ao centro, numacircunferncia, a mo direita com um compasso,ladeado por instrumentos msicos] Lisboas. o n1 de uma publicaoperidica que teve 26 nmeros, nemtodos com o mesmo ttulo, e de que foi autor Jernimo TavaresMascarenhas de Tvora, alguns da autoria do P.Victorino Jos da Costa. Seguem-se alguns nmeros: () Certame(Aqui e comea a ler o titulo desta obra.)que celebraram os Acadmicos fleumticos da rua do Caldeira, noterritrio da Cotovia () Ano 1731()Oposies da Academia fleumtica, quando vagou a Cadeira de Retricapor falecimento de Joo de Almeida,Careca das Cozinhas.() in ALMEIDA, M. Lopes de (Dir.), Catlogoda Coleco de Miscelneas (Vols.CCLXXXI a CCCLXXV), Publicaes da Biblioteca Geral daUniversidade, Coimbra, 1970, pp.142-143. Daautoria de Vitorino Jos da Costa: Apresentao de Joze Rato naAcademia Fleumtica, Lisb. 1731 inSummario da Bibliotheca Lusitana, Oficina da Academia Real dasCincias, Lisboa, 1787, Tomo 3, p.371. Sobre
  • 13Francisco Rodrigues Lobo que em forma de dilogo colocou as suaseruditas personagens atratar de matrias proveitosas, polticas e engraadas, como que emforma de tertlia: Sointerlocutores principais Leonardo, um antigo corteso, outrorafrequentador da casa dos Reis,agora retirado no remanso da aldeia; o Dr. Lvio, letrado douto eprudente que antes exercerahonrados cargos de governo da justia; um jovem fidalgo, D. Jlio,afeioado caa eleitura da histria ptria; Pndaro, estudante de bom engenho,dedicado poesia; e Solino,velho de boa criao e inteligncia viva, que se faz notar pelaagudeza e graa dos seusditos. A estes, que regularmente se renem nos seres de invernoem casa do primeiro, se vmdepois juntar outros: o licenciado Feliciano, amigo de Pndaro; oPrior de uma igreja vizinha,que antes dos hbitos eclesisticos que agora usa, envergava numtempo o trajo da Corte; eum soldado, seu irmo, de nome Alberto.1Passaremos agora a uma outra obra j dos finais da segunda metadedo sculo XVIII,de grande interesse para este ponto, pois alm de se englobar empleno neste conjunto aquidefinido, um exemplo mais polido e j fruto de um perodo de maioravano das letras e dasluzes em Portugal. Os dilogos dos Estrangeiros no Lima, obraescrita pelo erudito mdicoManuel Gomes de Lima Bezerra, que junta cinco homens eruditos,todos oriundos de pasesdistintos e com diferentes ofcios, a saber: Raulin o filsofofrancs; Clarck o comercianteingls encarregado pela Sociedade Real de Londres de observar aHistria Natural dePortugal, o estado da sua agricultura e do seu comrcio, as suasraridades e a corografia dassuas provncias e cidades; Jlio o viageiro italiano; D. Hugo ogenealgico espanhol; e Lamio mdico portugus. Esta obra, tal como o seu autor pelointeressante percurso de vida queteve, foi estudada sob diversas perspectivas por vrios autores2.O esprito dos Estrangeirosno Lima vai ao encontro da AHI, sem a vertente popular desta esem o seu carcter anti-elitista, no entanto apresentando outras componentes inovadoras.Lima Bezerra concebeuigualmente um espao cnico ficcionado de sociabilidadeintelectual, colocando cincoeruditos a trocar ideias e a discutir assuntos com o objectivofinal de estudarem a regio dePonte de Lima, para que pudessem contribuir para o seudesenvolvimento3. A obra osesta academia ver tambm: FERREIRA, Joo Palma, AcademiasLiterrias dos Sculos XVII e XVIII, Lisboa,1982, p. 114. 1 CARVALHO, Jos G. Herculano de, Um Tipo Literrioe Humano do Barroco: O Corteso Discreto,Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra,Vol.26, Coimbra, 1963, pp. 11-12. 2 Ver os diversos estudos novolume suplementar de: BEZERRA, Manuel Gomes de Lima, OsEstrangeiros noLima, Edio fac-similada da 1 com um volume suplementar deestudos, 3 Volumes, Cmara Municipal deViana do Castelo, Viana do Castelo, 1992. 3 AMZALAK, MosesBensabat, Os estudos econmicos de Manuel Gomes de Lima Bezerra,Instituto Superiorde Cincias Econmicas e Financeiras, Lisboa, 1959.
  • 14Estrangeiros no Lima apresenta-se assim com um carcter de estudoeconmico e social deuma regio, elemento extremamente inovador, onde o seu autor emesprito de tertlia colocapersonagens com nacionalidades diferentes unidas pelo mesmoobjectivo. O carcter de uniointernacional destes eruditos extremamente interessante, e niconeste grupo de obras quetm sido aqui referidas.Seja esta uma das vezes, em que um Francs com um Ingls, e umCastelhano com umPortugus falem como sbios, e livres das preocupaes vulgares enacionais. Os homens deletras reconhecem por ptria o mundo inteiro. 1Estas frases carregadas de simbolismo conferem um certo espritomanico a estasreunies em Ponte de Lima, esse sentido de pertena a uma ptriauniversal, e essa expressode fraternidade que Lima Bezerra quis conferir s personagens,aproximam-se bastante doambiente vivido nas lojas manicas da poca. Esta obra est tambminevitavelmente ligadaSociedade dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Publico fundada emPonte de Lima,mais conhecida como Sociedade Econmica de Ponte de Lima, quetinha na poca potenciaisligaes Maonaria2. Ora neste esprito de fraternidade universalque se prope dar incioaos dilogos e conferncias deste grupo de homens de letras que sevo prolongando pordiversos assuntos com especial destaque para questes econmicas ecomerciais.3 Importatambm referir que Lima Bezerra foi scio fundador e secretrio deduas academias cirrgicasno Porto, e correspondente da Academia Real das Cincias deLisboa, nascido em Ponte deLima, em 1727, formou-se em Medicina, exercendo a clnica nacidade do Porto, at falecer1 BEZERRA, Manuel Gomes de Lima, Os Estrangeiros no Lima: ouconversaoens eruditas sobre varios pontosde Historia Ecclesiastica, Civil, Litteraria, Natural,Genealgica, Antiguidades, Geographia, Agricultura,Commercio Artes, e Sciencias Real Oficina da Universidade,Coimbra, Tomo I 1785, p.2. 2 Sobre a hipottica ligao Maonaria daSociedade Econmica dos Bons Compatriotas, Amigos do BemPblico, de Ponte Lima, como sendo um instituio paramanica,hiptese suscitada pelo emblema da mesmaque contm simbologia declaradamente manica (3 colunas, esquadroe compasso): MARQUES, A. H. deOliveira, Histria da Maonaria Portuguesa, Volume 1, Das origensao triunfo, Lisboa, 1990, p.308. Entre osfundadores desta sociedade esteve o Conde da Barca, Antnio deArajo de Azevedo, tambm ele provvelmaon. Ver tambm: MALAFAIA, Eurico Brando de Atade, Antnio deArajo de Azevedo. Conde da Barca:diplomata e estadista 1787-1817. Subsdios documentais sobre apoca e personalidade, Arquivo Distrital deBraga, Universidade do Minho, Braga, 2004. 3 Referncia obra comouma expresso do pensamento econmico da poca, e contempornea dasMemriasAcadmicas da Academia das Cincias. Ver: CALAFATE, Pedro, Histriado Pensamento FilosficoPortugus, Volume III, As Luzes, Lisboa 2001, p. 95.
  • 15no ano de 1806. Foi autor de diversas obras e artigos cientficosincluindo duas Memriaspublicadas no Jornal Enciclopdico, publicadas em 1789 e1790.1Antes de encerrar este captulo, resta incluir neste grupo deobras a Academia dosHumildes e Ignorantes que por ser o tema central deste estudoser analisada com outraprofundidade nos captulos seguintes. Nesta academia imaginria,do autor Joaquim de SantaRita, que transporta o esprito da partilha de conhecimentos e daerudio das academiasinstitucionais da poca para o campo literrio, podemos assistir aquatro personagens eruditasa interagirem em Conferncias, s quais assistiam peregrinos eromeiros e todos aqueles quenelas quisessem participar. Esse sbio quarteto era composto por:um Telogo representantedo conhecimento religioso, dos dogmas e de toda a HistriaSagrada e Eclesistica; umFilsofo, que alm de ser o moderador das conferncias era a vozdas cincias modernas ouFilosofia Natural; um Soldado, conhecedor do mundo, das guerrase da histria secular,militar e herldica; um Ermito, homem religioso e conhecedor dosquatro cantos do mundopor onde missionou durante toda a sua vida. Mais tarde,juntaram-se a estes outros doisacadmicos: um Letrado, homem de letras e um Estudante, curiosoaprendiz. Finalizaremoscom uma ltima meno a uma outra hipottica academia fictcia quesurgiu em respostaAHI, onde reunidos numa botica de Lisboa um Jarra da Cortechamado Diogo Belo, umCirurgio e o Boticrio decidiram tambm formar uma academia parasupervisionar essasoutras academias que sapateiros, alfaiates, ferreiros etanoeiros tanto procuravamansiosamente e gastavam o seu dinheiro para lerem as suasapetecidas conferncias.O que une todas estas obras referidas o seu objectivo decompilao doconhecimento, em estilo enciclopdico, numa tentativa de explicaro mundo, o universo e avida. Elegem a Histria e a Filosofia Natural ou Cincia como osdois grandes pilares dosaber, a desenvolver e a partilhar, num esforo comum contnuo emque todos podiamparticipar. Um movimento de divulgao e vulgarizao do saber numespao universal dasletras com a caracterstica especial de os seus autores teremtransportado regras desociabilidade e padres de comportamento para as suas obras,recorrendo quase sempre aodilogo erudito.1 SILVA, Inocncio Francisco da, e ARANHA, P. V. Brito, DicionrioBibliogrfico Portugus(..), Tomo 16,pp. 444-445. Sobre o autor Lima Bezerra ver tambm: ARAJO, AnaCristina, A Cultura das Luzes em PortugalTemas e Problemas, 2003, p.74 e p.83.
  • 163. A Academia dos Humildes e IgnorantesPrope-se aqui abrir as portas de uma academia especial, onde ainspirao literriatransportou os cdigos da sociabilidade intelectual para um espaomaterializado no mundoimaginrio do orbe das letras. Arquitectando, neste casoparticular, uma academia quimrica,especialmente dedicada instruo dos desfavorecidos, utilidadepblica e em ltimainstncia felicidade do povo, representao fictcia de um espaosocial e intelectual da suapoca.O sbio e o pblico, o autor e o leitor, a ideia materializada naescrita e a suainteriorizao atravs da leitura. nesta dualidade, possibilitadapela existncia de umalinguagem escrita, que as ideias e o conhecimento se espalharamao longo da histria pelasmentes mais atentas. O sculo XVIII assistiu a uma revoluointelectual que perdurou at aosdias de hoje, numa escala pequena, o discurso do homem ilustradopercorreu as mentes doshomens, mesmo a dos menos letrados, pois se as taxas deanalfabetismo eram enormes nestapoca, a capacidade de falar e a partilha de ideias por via oralter sido um poderoso veculode informao. A leitura de um folheto num local pblicoaniquilaria a incapacidade deadquirir conhecimentos por parte de um pblico iletrado,eliminando assim a certezadefendida por alguns autores de que os ideais iluministas apenascirculavam num restritogrupo de intelectuais1.O sculo das luzes em Portugal, ao ritmo da Europa, foi palco deuma proliferao dettulos, sobretudo com o desenvolvimento do conhecimentocientfico e a respectivafragmentao dos diversos ramos do saber, que tornou os contedosliterrios cada vez maisespecializados em detrimento de assuntos genricos. Este fenmenodeve ser enquadrado nomovimento filosfico das luzes e na afirmao da Repblica dasLetras, que despertou umcerto esprito intelectual da poca, expresso num desenfreado amorpelo conhecimento, pelasletras e pelas artes, que inspirou o uso da pena e nos deixou osmais diversos registos do gniohumano.Ao estudarmos a histria intelectual portuguesa do sculo XVIII,vemos uma histriatendencialmente direccionada para personagens pertencentes a umgrupo social especfico,como que se o intelecto humano fosse um exclusivo das classesfavorecidas ou andasse1 Esta leitura nas ruas era algo comum na poca e contribuiufortemente para a divulgao das ideias escritas.Ea de Queirs, ponderando a questo da leitura no sculo XVIII,falou no desaparecimento do leitor, enquantoindivduo; e em lugar dele, acrescentou Ea, o homem de letras viudiante de si a turba que se chama opblico, que l alto e pressa no rumor das ruas. DOMINGOS,Manuela, Livreiros de Setecentos, BibliotecaNacional de Lisboa, Lisboa, 2000, p.9.
  • 17sempre aliado riqueza patrimonial. A imagem que se vai passandoaquela de eruditosaristocratas, nobres ou abastados burgueses, homens do clero ouda corte, como nicosdepositrios da erudio, protagonistas de uma aliana elitistaentre o poder e o saber. Masmargem destas elites sabemos que viveram eruditos entre o povo,que subtilmente nosdeixaram as suas obras nas sombras das grandes modas, ao vapordas tipografias menores, nacorrente da revoluo tipogrfica e livreira, vendo as suas ideiasganharem forma, veiculandoas suas interpretaes da sociedade, do conhecimento e da poca.nesse mar de letras quepodemos encontrar as mais curiosas obras, de autores que por seterem escondido atrs depseudnimos, por anonimato premeditado, ou porque nunca tiveram oapangio da famaforam abraados pelo esquecimento.O estudo desta obra tem um duplo interesse, por um lado d-nos aconhecer umaacademia fictcia dentro do esprito da poca, uma representaosociolgica literria de umgrupo de intelectuais que atravs do dilogo partilham ideias comum outro grupo sociolgicocomposto por homens incultos, iletrados, humildes e ignorantes.Por outro lado a AHI afirma-se como um compndio do saber, assumindo uma forma enciclopdicapretende nas suaspginas encarcerar todo o conhecimento.A obra desenhando assim a sua uma academia imaginria, numaencenao fictcia vairevelando esses eruditos acadmicos que nas suas conversaspartilham ideias, ensinam asmatrias fundamentais, contam histrias de viagens longnquas,falam dos encontros quetiveram com outros eruditos estrangeiros. Esses dilogospreenchiam assim as conferncias daacademia, conferncias essas que ocorriam de porta aberta paratodos, mas sobretudo para ohomem inculto, para o trabalhador, para os modestos e para osignorantes que procuravamilustrar-se. A ingenuidade desta oferta gratuita deconhecimento, pode levar a reflectir sobre ointeresse comercial de vender essas ideias. necessriocompreender que a pertena a umaacademia, tem uma importncia muito especial para a poca,representando um claro sinal deestatuto social, ora a AHI, por um lado oferecia esse status atodos, mas por outro tentatambm banalizar o que na poca era visto como algo apenasacessvel a uma pequena eliteilustrada.A pedra angular de toda a investigao e pesquisa realizadaassentou no texto da obra,que abriu caminhos para decifrar diversas pistas sobre a origemda academia, sobre o seuautor e sobre as suas fontes. O que possibilitou umenquadramento da obra num espao etempo especficos. Durante o processo de investigao foiencontrado um documento decrtica directa AHI, impresso em 1758, que deu uma nova dimensoobra e trouxeinformaes de sublime interesse para o seu estudo, desde o preo aque os seus folhetos eramvendidos ao seu sucesso comercial entre o pblico. Foi tambm estedocumento que obrigou o
  • 18autor a sair do anonimato em defesa da veracidade das suaspalavras, permitindo igualmenteaprofundar o seu trao biogrfico.Independentemente do carcter ficcional da obra, este estudo seriniciado com umabreve apresentao da sua academia, dos seus objectivos, dos seusmembros, das suas regras,do funcionamento e dos contedos das suas conferncias.Posteriormente, ser realizada umaanlise da obra em concreto, da sua estruturao, do seu contedoliterrio, histrico ecientfico, da sua evoluo ao longo do tempo, da sua publicao eimpresso. Dividindo oseu percurso em dois momentos claramente distintos, o antes e odepois do anonimato doautor. Em seguida, investir-se- na difcil tarefa de conhecer asentidades envolvidas naproduo da obra, com base em algumas pistas espalhadas, seroapresentados nomes que deuma forma directa ou indirecta estiveram associados AHI, desdepotenciais membros daacademia ao enigmtico Frei Joaquim de Santa Rita, nico autorconhecido. De destacar queexistem diversas referncias AHI como sendo uma academia queexistiu verdadeiramente.O terramoto de 1755 tambm abalou os pilares do conhecimento e asfundaes daRepblica das Letras, inmeras bibliotecas ficaram perdidas parasempre, e as tipografias deLisboa pararam. Curiosamente aps esta calamidade que aparecem emPortugal diversasobras deste carcter de compilao do conhecimento, como quetentando salvaguardar numas obra todo o conhecimento, toda a histria e cincia conhecidas.Pedro Norberto de Aucourte Padilha, escrivo na Mesa do Desembargo durante o reinado de D.Jos, descreve-nos estesentimento no prologo da sua obra intitulada Raridades daNatureza e da Arte divididaspelos quatro elementos publicada em Lisboa no ano de 1759:Se Ccero chamou morte do homem ociosidade, tambm com mximaCatlica se podechamar remdio da vida o emprego literrio, porque a recreao doslivros uma polticacrist para a conformidade dos males, e toler-los com semblantealegre, herica indstriapara ser feliz, sem depender da fortuna. O Terramoto, que mearruinou os bens, no ssepultou muitas vidas, mas tambm as oficinas da sabedoria:dificultou com a perda dasBibliotecas os meios para a lio, e no moderou nos nimos o diopara a mordacidade; noque novamente fica confirmado ser filha da ignorncia.Nestas palavras podemos ver reflectido o esprito que movia oshomens de letras dapoca, apelando aco da escrita contra o cio e contra o mal,mantendo sempre o nimomesmo nos momentos tenebrosos, criticando a mordacidade dos quese movem contra aRepblica da Letras. A ttulo de curiosidade Santa Rita conheciaas obras de Aucourt Padilha,ao qual faz referncia.
  • 19importante perceber que o iluminismo se foi construindo sobreuma rede decontactos internacionais, trocas de correspondncias, circulao depublicaes, livros efolhetos, viagens e encontros pessoais entre intelectuais. Semcair nas discusseshistoriogrficas sobre o movimento das luzes na Europa e foradela, sobre a justificao ouno de diversos tipos de iluminismo, de um iluminismo catlico,ibrico ou portugus,pretende-se apenas deixar claro que a Academia dos Humildes eIgnorantes uma obrainiciada em 1758 recheada de preceitos e ideias das luzes, noporque o seu autor dissertousobre os princpios desse pensamento mas porque os meteu emprtica. Poderamos quaseafirmar que a sua obra um caso prtico de iluminismo, umamaterializao dessas ideias,audaz e mordaz, brutal e singela. A cultura do seu autorinegvel, no s conhecia autores eobras estrangeiras, como as Mmoires de Trvoux, ou o Journal desSavants, como a obra deintelectuais portugueses como Jacob de Castro Sarmento. Contudonecessrio olhar paraobra luz da sua poca, o autor afirma-se aristotlico, tececrticas ao povo Judeu, e alimentaalgumas crenas populares sobretudo sobre bruxarias emonstruosidades da natureza, contudoe ao mesmo tempo, tece elogios ao uso da razo, demonstrando a umforte entusiasmo pelosavanos da moderna filosofia natural, e sobretudo pretendecompilar todo o conhecimentooferecendo-o a uma classe desfavorecida.No nos interessar neste estudo cair nas discusses sobre a origeme geografia doIluminismo, se este teve origem na Inglaterra de Newton, Baconou Locke ou nos filsofosfranceses fundadores da Republica das Letras, apenas nosinteressa o carcter internacional domovimento das luzes, sabendo que diversos pensadores para elecontriburam, de diversasformas e em diversos locais, e todas essas contribuies tiveramefeitos localizados e muitasvezes divergentes. Sabemos tambm que o iderio das luzes teve asmais diversasmanifestaes, especificidades regionais e temporais, o que tornaextremamente complexa acompreenso dos seus verdadeiros impactos nos diversos contextospolticos e sociais.
  • 203.1. As conferncias da academia: temas e fontesAps o terramoto de 17551 que abalou a capital do reino portugus,durante o reinadode D. Jos I, assistiu-se, no ano de 1758, ao nascimento daAcademia dos Humildes eIgnorantes2. Uma academia de homens que se consideravam eruditosmas tambm modestos eignorantes, que durante as suas conferncias e reunies mantinhama porta aberta para todosaqueles que sendo tambm humildes, pobres e iletrados, osquisessem ouvir e com elesaprender. S pelo nome da AHI podemos antever algum atrevimentopor parte do seu criador,em pleno sculo das Luzes, sculo de intelectuais iluminados, deelites sociais, de academiaseruditas e altamente patrocinadas, apareceu uma academia dopovo, dirigida aos maisdesfavorecidos, que apesar de tambm desejarem participar nagrande viagem doconhecimento no possuam meios para tal proeza. Foi assim criadauma obra para aquelesque no possuam bibliotecas privadas, nem tempo para usufruremdas pblicas,condicionadas pelas suas obrigaes laborais ao contrrio de certaselites. Uma obra quepretendia encerrar em si uma smula do saber dedicada ao homemcomum, num verdadeiroesprito do Iluminismo, encarna um papel de laicizao doconhecimento. luz da razo,todos os homens seriam iguais, a sua condio social, o seu credo,sexo, ou raa, nopoderiam ser indicadores da sua motivao de aprender. luz dessamesma razo qualqueresprito poderia ser iluminado. Esta ideia de democratizao dosaber aliada s noes deigualdade, dilui-se num certo elitismo existente nas academiasque proliferaram durante osculo XVIII por toda a Europa. Com o desenvolvimento da cincia edo conhecimento, osmtodos e disciplinas racionalistas tornaram-se cada vez maisexigentes, excluindo aquelesque partida no teriam condies para serem iluminados. Estaproposta de levar um resumodo conhecimento a todos, e principalmente aos maisdesfavorecidos, atravs da criao 1 A aluso ao terramoto de 1755 comoa causa da criao da academia refora a ideia fantstica de que depoisdeuma catstrofe nascera, como que por vontade divina, aqueleencontro de eruditos, do caos nascera a luz. 2 A Academia dosHumildes e Ignorantes encabea o ttulo de uma obra onde quatropersonagens eruditas, asaber um telogo, um filsofo, um ermito e um soldado, que sereuniam para partilharem os seusconhecimentos com os romeiros e carenciados que por alipassavam. A academia comea por apresentar a suaobra como sendo utilssima para todas as pessoas eclesisticas eseculares que no tivessem bibliotecas prprias,nem tempo para frequentarem as pblicas, uma Suma Excelente detoda a Teologia Moral, Filosofia Antiga eModerna, Matemtica, Direito Civil e Cannico, de todas asCincias, Artes Liberais e Mecnicas. Seria assimum compndio brevssimo de todas as notcias do mundo, das suaspartes, imprios e reinos, cidades e vilas,castelos e fbricas notveis, costumes, ritos e leis. Da vida deCristo, de todos os Santos e Santas e venerveismais conhecidos. De todos os Papas, imperadores, reis eprncipes, desde o princpio do mundo at ao presente.De toda a Histria Sagrada, eclesistica e secular. De todos ossucessos admirveis e esquisitos, de todos osartefactos, mecanismos antigos e modernos. Enfim uma ode aosaber e a todo o conhecimento.
  • 21fictcia de uma academia, d-nos uma primeira ideia do magofantstico desta obra e dointuito do seu autor, que colocando personagens a dialogar, bemao estilo platnico, concebeuum ambiente de sociabilidade intelectual simulado.A primeira conferncia da AHI, revela claras referncias cnicasquanto ao local, datae personagens envolvidas na aco, iniciada com as seguintespalavras:No stio de Nossa Senhora da Consolao, recreio delicioso entre aLourinh, e Peniche, sejuntaram no dia 20 de Setembro, entre muitas pessoas, um Telogo,um Filosofo, umErmito, e um Soldado1.() depois de praticarem nos graves danos da murmurao, e anecessidade da Eutraplianos que viviam (como eles) solitrios naquele sitio desde oterramoto, assentaram que, paraevitar aquele dano, e poderem mutuamente instruir-se no miservelestado, em que estavam,se juntassem com os romeiros, que ali fossem, uma vez cadasemana, e cada um dissesse oque sabia na matria, que primeiro ocorre na Conferencia, e osmais que tivessem com elasemelhana.2Existe uma clara inteno por parte do autor em enquadrar no espaoe no tempo aorigem da academia, encaixando-a num cenrio real e actual dapoca. Existe de facto umlocal chamado monte da Nossa Senhora da Consolao, junto actualpraia da Consolao nazona de Peniche, onde est edificado o Forte da Consolao, forteesse que foi construdo em1641 como parte integrante de um projecto de proteco das linhascosteiras do reino noperodo da Restaurao.3 De facto existem ao longo da obra diversasreferncias ao Fortecomo local das conferncias dos nossos acadmicos, na Conferncia28 do tomo I podemosler: Na manh do dia treze, juntos no Forte com muitos Romeiros,que chegaram na noiteantecedente, continuou o Soldado a vida de D. Fernando ()4. Eficamos tambm a saberque o Forte onde se reunia a academia tinha vistas para omar:No dia dois de Novembro, convidados os Acadmicos da excelentetemperie do ar e sol,antes da hora costumada foram gozar-se de uma e outra coisa noForte, donde descobriramtrs navios com as bandeiras largas, e ao longe cinco. Com umculo intentaram conhecer deque nao eram e seguiu-se a disputa sobre as bandeiras, queinsensivelmente deu princpio1 [AHI, T1, C1, p.1]. 2 Idem. 3 In site oficial da CmaraMunicipal do Concelho de Peniche: http://www.cm-peniche.pt. 4 [AHI,T1, C28, p.217]. Ver tambm na conferncia 34 do mesmo tomo: Depoisde cearem, se juntaram noFortep.265.
  • 22Conferncia ().1() porque bem pode uma trovoada como a de dia de Nossa Senhoradas Neves no ano de1759 estar sobre Lisboa lanando coriscos, como aquele o fez nostio de Penha de Frana, eserem os troves imediatos aos relmpagos neste stio da Consolao,como ento os vimos,no obstante distarmos de Lisboa onze lguas (…). 2O terramoto de 17553 enquanto motivo para o estado de desgraa emque todos seencontravam ali refugiados naquele stio, serve tambm para daractualidade Academia, quea poucos anos da sua ocorrncia os seus efeitos ainda estavam bempresentes. O terramotoum assunto recorrente nas conferncias da academia ao longo detoda a obra. Sabe-se queaps o terramoto de 1755, que arrasou a cidade de Lisboa,milhares de pessoas procuraramrefgio nos arredores da capital, tendo sido acolhidas porconventos, mosteiros, e edifciosmilitares. Vemos ento os nossos eruditos que naquela situao demisria causada peloterramoto, decidiram fundar uma academia para aquelas gentesinfelizes e solitrias, com oobjectivo de discutir e avaliar o estado da situao em que seencontravam, de sorte, que oshumildes, e ignorantes que os ouvissem, ficassem instrudos poreste fcil meio; e comnotcias para comunicarem a seus filhos, aos quais, por humildes,e pobres, no podiamaplicar aos estudos.4 As primeiras conferncias focam-seexactamente em tentar explicar aorigem e funcionamento do planeta, partindo de uma perspectivabblica passando para umaviso mais cientfica sobre o seu funcionamento e complexacomposio geolgicaprocurando elucidar as causas dos terramotos.Os membros da academia eram inicialmente quatro homens eruditos,a saber umTelogo, um Filsofo, um Ermito e um Soldado. Quatro alter-egos doautor, que dado ovasto leque de temticas abordadas, bem poderiam ter sidopersonagens dirigidasindependentemente por diferentes autores. Cada personagemassumia a direco de uma reado saber, mas a participao na academia no se esgotava nestesquatro ilustrados, pois a suaporta aberta a todos os que nela queriam participar, deram lugarparticipao de diversoscuriosos e romeiros, que partilhavam tambm as suas experincias,intervindo nasconferncias de forma pertinente e com total liberdade paracolocar questes e apresentar1 [AHI, T3, C36, p.281]. 2 [AHI, T4, C4, p.27]. 3 Sobre oterramoto de 1755 ver a obra: ARAJO, Ana Cristina, O Terramoto de1755: Lisboa e a Europa,Clube do Coleccionador dos Correios, 2005. 4 [AHI, T1, C1,pp.1-2].
  • 23problemas. Numa segunda fase da obra, juntam-se aos quatroeruditos dois novos membros,um Letrado, e um Estudante.As leis pelas quais se rege a academia, so enunciadas logo naprimeira confernciapelo ilustre Filsofo:Basta, disse o Filsofo, observemos as leis desta Academia:v.m.[referindo-se ao Telogo]s diga o que pertence Teologia, que podem, e devem saber todos;eu a Filosofia, quepertence aos mesmos, o nosso Ermito, que tem visto o mundo, oque viu nele, e o SenhorSoldado as guerras de todas as Monarquias.1O princpio regulador do funcionamento da academia ento este, quecada um trateapenas das matrias que domina enquanto autoridade do saber nasua rea. Ocasionalmente,no decorrer das conferncias acadmicas instauram-seconsensualmente novas regras, quenascem dos dilogos e discusses dos nossos eruditos, comoaconteceu por exemplo na quartaconferncia, que pela extenso do discurso do Ermito queimpossibilitava a participao dosoutros, ficou decidido que:() fique sendo lei desde hoje, que no princpio de cadaConferncia, dareis conta deuma parte do mundo [dirigindo-se ao Ermito], ou do que nela vosfalta por dizer, paraassim poderem os mais contar o que tem sucedido em todo o mundo,e ficar sendo mais doceesta pratica.2A AHI apresenta-se assim com uma caracterstica fundamental que adistingue dasoutras da sua poca, era uma academia dirigida por eruditos masque mantinha a porta aberta,deixando que romeiros e homens humildes participassem nas suasconferncias. Afasta-se decerta forma da sociabilidade intelectual elitista caractersticada poca, em oposio sacademias de homens nobres e aristocratas, esta era uma academiapara homens humildes epobres, para o homem comum, o que com um certo toque de crticasocial, revela um carcterinovador e bastante arrojado para poca.3 Talvez por isso o autortenha optado pelo anonimato1 [AHI, T1, C1, p.4]. 2 [AHI, T1, C4, p.28]. 3 Note-se noentanto que para se ser um acadmico, por exemplo da Academia Realda Histria, no eraobrigatrio pertencer alta nobreza, entre os membros destaacademia encontravam-se indivduos pertencentesnobreza, ao clero e tambm ao terceiro estado. A ideia que aquise pretende passar que o acesso a estasacademias era extremamente reservado. Sobre a estratificaosocial da Academia Real da Histria ver: MOTA,
  • 24anonimato durante os primeiros tomos da obra. Mas o propostopela academia vai ainda maislonge, pois as suas conferncias ambicionam edificar umverdadeiro compndio de todo osaber, da Histria Arte, da Cincia Teologia, do Direito Culturados povos, do Mundo eda Natureza. De inspirao enciclopdica, bem inerente ao espritodo Iluminismo, pretendiaigualmente ser uma obra de fcil leitura, permitindo que todos apudessem compreender,assumindo assim um papel educativo do povo, de ilustrao da nao,mxima dos homensdas luzes. Contudo, deve ser realada a forte presena de umesprito eclesistico em toda aobra, conjuntamente com uma certa ligao Ordem dos Eremitas deSanto Agostinho,possivelmente incutida pelo percurso pessoal do autor.tambm importante referir a permanente preocupao do autor emtornar o textodidctico e interessante. Existiu um certo cuidado na fidelizaodos leitores, os temas eramdeixados em suspense de uma conferncia para a outra, abrindo oapetite para descobrir odesenlace das histrias que eram contadas. Um outro detalheigualmente interessante, presenteao longo da obra, o facto de que sempre que o autor transcreveuum texto em latim, teve apreocupao de logo de seguida o traduzir literalmente paraportugus, ou de o explicarintegralmente. Esta no era uma prtica comum entre os autores dapoca, so inmeras asobras que usam o latim como se fosse compreendido por todos,passando deste para oportugus e vice-versa sem qualquer inquietao de esprito,limitando assim o acessoessncia dos seus textos pelo comum dos mortais, pois se na pocaa capacidade de ler eradiminuta entre a populao, a capacidade de ler em latim o seriamuito mais. Estasimplificao erudita do conhecimento demonstra uma perfeitasintonia, por parte do autor,com a filosofia do esclarecimento, demonstrando a sua preocupaoem no criar entravescompreenso do seu texto.A publicao dos tomos da AHI, divide-se em duas fases distintas,a 1 faseconstituda pelos seis primeiros tomos, de autor incgnito, apenasidentificado pelas iniciaisD. F. J. C. D. S. R. B. H., que tero sido impressos entre 1758 e1762, nas oficinas de IncioNogueira Xisto e de Francisco Borges de Sousa. Tambm na oficinade Incio NogueiraXisto, foi impresso em 1764 o ndex das Coisas mais Notveis deque tratam os Seis Tomosdas Academias dos Humildes, e Ignorantes, que consistebasicamente numa compilao,publicada em separado, de todos os ndices constantes naquelestomos. Os dois ltimostomos, VII e VIII, representam a 2 fase da obra, de autoriadeclarada de Frei Joaquim deSanta Rita, impressos entre 1763 e 1770, pelo impressor do SantoOfcio Miguel Manescal daCosta. Do tomo I ao VI, temos 52 conferncias por tomo, de oitopginas cada, impressas Isabel Ferreira da, A Academia Real daHistria: os intelectuais, o poder cultural e o poder monrquico nosc.XVIII, Coimbra, 2003, pp. 106-111.
  • 25separadamente. Nos dois ltimos volumes, o nmero de confernciaspor tomo passa a ser de40, com 12 folhas cada, cada conferncia tambm impressaseparadamente, e no final de cadatomo um ndice alfabtico, de dimenso inferior relativamente aosimpressos em 1764 para ostomos anteriores.A diviso da obra em duas partes justifica-se por diversas razes,alm de umamudana na organizao e estrutura dos tomos, ocorreu uma sbitareivindicao da autoriada obra, uma subtil alterao do ttulo, uma mudana de impressorjuntamente com umaexclusividade de impresso, e por fim uma total mudana no estiloda escrita, presente naorganizao e desenvolvimento dos temas abordados. O autor ao sairdo anonimato pareceagora naturalmente mais preocupado com a qualidade da sua obra edos temas abordados,patente no notvel aumento da qualidade da escrita e tratamentodos temas. Os dois ltimostomos so agora mais bem elaborados, de certa forma maiseruditos, onde so feitas maisreferncias a autores e outros intelectuais da poca. A componentedialogstica sempremantida ao longo de toda, com alguns momentos de menorparticipao das personagensquando o autor trata de temas mais longos e complexos. No ltimotomo, de realar que aspersonagens comeam mesmo a falar de aspectos da sua vidapessoal, referindo nomes depessoas com as quais tero convivido e partilhado experincias, oque abriu tambm caminhopara estudar uma possvel rede social do autor, sabendo que esteera o interlocutor de todas aspersonagens, e partindo da ideia de que muitas das histrias querelata possam ter sidobaseadas na sua vida pessoal ou nas experincias pessoais deoutros com quem ter partilhadoideias, as diversas referncias permitem estabelecer hipotticosrelacionamentos pessoais.O vasto leque de temas abordados ao longo dos seus 8 volumespublicados, com cercade 460 pginas cada um, permitiu a realizao de uma anliseexaustiva do seu contedo, edas suas fontes e referncias. No entanto pela dimensoenciclopdica da obra, e pelaimensido de temas e assuntos abordados, decidiu-se trazer paraaqui apenas os que numaprimeira anlise ilustram melhor o gnio literrio do seu autor.tambm importante referir,que no foi possvel identificar ou conhecer a origem de muitasdas referncias e pistassuscitadas pelo texto da obra, no obstante sero aqui mencionadascomo fonte de informaopara outros estudos futuros.O primeiro tomo, comea por tratar de uma autntica miscelnea detemas, desde agnese bblica do mundo at ao funcionamento do sistema solar e dateorias de Coprnico,passamos por experincias agrcolas, pela geologia da terra, pelofuncionamento do meioambiente natural. So contadas histrias de lugares remotos domundo, da ndia frica,chegam-nos notcias dos seus costumes e hbitos alimentares.contada a histria dascivilizaes antigas, do Egipto ao grande imprio Romano. Soexplicadas as diversas formas
  • 26de governo dos reinos, da monarquia democracia, dando exemplosdo seu funcionamento eenunciando os diversos sistemas implementados nos paseseuropeus. A meio do primeirotomo comea-se j a notar uma certa tendncia para contar a Histriaeclesistica e secular dePortugal, tendncia essa que monopoliza cerca de metade da obra,sobretudo a partir do tomoIII at meio do tomo VII. Cabe aqui realar que os estudos deManuel de Faria e Sousa1 e doConde de Ericeira so as duas fontes histricas principais usadaspor Santa Rita, como oprprio o afirma, fazendo-lhes inmeras menes ao longo das suasdissertaes sobre aHistria do reino e da Europa. Sobre o primeiro diz porexemplo:Vs fundado no grande Historiador Manuel de Faria e Sousa nocontastes o que eleencobriu, por que escreveu em Castela no tempo de Filipe III dePortugal; e no justo queuns ignorantes, e humildes, como somos, ignorem as verdadeirasmais constantes.2No entanto Santa Rita elege o segundo como a sua principal fontede Histria dePortugal, o Conde de Ericeira Historiador nico da nossaMonarquia3. So feitas inmerasreferncias a este Conde durante toda a obra, nunca no entantosendo possvel perceberclaramente a qual dos Condes de Ericeira se referia, mas quepela referncia feita ao primeirotomo da obra sobre Histria de Portugal desse conde4 podemosapontar para o 3 Conde deEriceira D. Lus de Menezes autor da obra PortugalRestaurado.5Ainda sobre as suas fontes histricas, Santa Rita traduziu umexcerto da obra doexcelente Historiador D. Jos Martines de la Puente no Prologo doseu Compndio de las1 Ver por exemplo: [AHI, T2, C1, p.1] ou [AHI, T2, C2, p.9];sobre Manuel de Faria e Sousa: poeta, historiadore fillogo portugus, n. em Pombeiro, m. em Madrid (1590-1649);autor de Comentrios dOs Lusadas; EuropaPortuguesa; sia Portuguesa; Eptome das Histrias Portuguesas;Fuente de Aganipe (em verso). In LelloUniversal, Dicionrio Enciclopdico Luso-Brasileiro,Lello&Irmo Editores, Porto, 1986, Vol.2, p. 939.2 [AHI, T2, C1, p.1]. 3 [AHI, T2, C1, p.2]. 4 [AHI, T2, C2,p.10]. 5 Sobre os diversos Condes de Ericeira: D. Fernando, 2 Condede Ericeira, guerreiro e historiador portugus, n.em Lisboa; autor de Vida e Aces de El-Rei D. Joo I (1677) eHistria de Tnger (1614-1699); D. Lus, 3Conde da Ericeira, guerreiro e escritor portugus, n. em Lisboa;autor de Portugal Restaurado (1632-1690); D.Francisco, 4 Conde de Ericeira, guerreiro e erudito portugus, n.em Lisboa (1673-1743); D. Lus , 5 Conde daEriceira, 1 Marqus de Lourial, vice-rei da ndia, n. em Lisboa em1689 m. em Goa em 1742. Autor de:Complemento ao Vocabulrio do Padre D. Rafael Bluteau; Suplementoao Dicionrio Histrico de Moreri.Traduziu a Histria de Carlos XII, de Voltaire. In LelloUniversal, Dicionrio Enciclopdico Luso-Brasileiro,Lello&Irmo Editores, Porto, 1986, Vol.1, p.857.
  • 27historias, e descubrimentos de la ndia Oriental, etc. hastaFilipe Segundo de Portugal1onde no final da transcrio enuncia todas as fontes histricas queutilizou nas conferncias:Isto sobeja aos que leram pouco para lhes excitar a curiosidade,e ateno; e eu para noerrar, quando me possvel vos contarei sumariamente o queescreveram Barros, Diogo deCouto, Gomes Banhes, Ferno Lopes, Luiz Coelho de Barbuda, Fr.Antnio de S. RomoMonge Benedictino, Bernardino de Escalante, Fr. Gaspar da Cruzda Ordem dosPregadores, o M. Fr. Jeronymo Roman, Eremita de meu Pai SantoAgostinho, Marco PauloVeneto, Mizer Pogio, Micer Luiz de Parthema, o Licenciado ManuelCorrea comentador deCames, Pedro Ordonhez de Zevalos na Viagem do mundo, o Tito LvioLusitano Manuel deFaria e Sousa, Mariz, e D. Joseph Martines de la Puente, que porestranho, e amigoreconciliado merece o maior crdito de verdadeiro edesinteressado. 2Esta Histria que Santa Rita trouxe para as conferncias da suaacademia sobretudo aHistria do Reino de Portugal baseada na vida dos Reis, comalgumas incurses nosdescobrimentos portugueses. A ttulo de curiosidade faz referncias aventuras de Preste Jooe Pero da Covilh famosos espies portugueses. Conta tambm aHistria do Reino deEspanha, a Histria do imprio romano e toda a histria mitolgica.Numa outra vertente decariz mais religioso conta a Histria Bblica, Sagra e Religiosa,apoiada nos textos bblicos ouem estudos de teolgicos. Conta tambm a Histria da vidas dosPapas, e dos Santos.Alm da Histria, e da Teologia, outro tema central presente umpouco por toda a obraa Cincia, ou Filosofia Natural como era conhecida na poca. Oautor refere-se tambm aesta como Filosofia Moderna a nobilssima cincia, fazendo inmerasreferncias aos maisdiversos assuntos cientficos, mas tambm reflectindo sobre o queera esta nova filosofia esobre a condio de ser filsofo.Tambm vos advirto que ser Filsofo moderno no ser Cartesiano;Renato Descartes foium grande Filsofo moderno, porm disse e escreveu muitas coisas,que nem pelopensamento nos passa segui-las: os modernos no seguem autor, nemescola alguma;veneram a todas e a todos, e em todas e todos vo buscar averdade se l a acham, einstrumentos ou graves demonstraes com que a mostrar, de sorteque o Filsofo modernoAristotlico, Cartesiano, Neutonista, etc., Tomista, Scotista,Edigiano, Mdio, e nadadisto , porque a nenhum destes defende nem segue.31 [AHI, T8, C12, p. 140]. 2 [AHI, T8, C12, p. 141]. 3 [AHI, T3,C18, p. 143].
  • 28tambm neste ponto que podemos ver que Santa Rita no era apenasum ingnuocurioso, defendo que o verdadeiro filsofo estuda e reflecte asdiversas teorias e doutrinas enunca se tornando num seguidor ou defensor delas, porque oobjectivo ltimo sempre aprocura da verdade e esta no escrava de nenhuma escola depensamento. Continua esteponto advertindo para a dificuldade de compreender os princpiosfundamentais da cincia,que inicialmente at poderiam parecer enfadonhos, mas a suaaprendizagem era fundamentalpara mais tarde se abrirem as portas para aquilo que era a coisamais til, agradvel, divertidae extremamente necessria. Traando assim o esprito iluminista dasua obra, em nome da luze da razo, da verdade, estes humildes e ignorantes atravs doensino da academia iriam seriluminados e salvos da cegueira em que viviam.Advirto-vos que agora no princpio no haveis de achar tanto gostono que ouvireis,porque, ainda que sejam coisas palpveis e claras, so princpios,sobre os quais assentamdepois as mais gostosas, divertidas, e pasmosas experincias, enotcias; por isso vosrecomendo tomeis com gosto grande as primeiras lies, porquetodas depois vos ho deservir para entenderes bem o que toda a vida vos h-de alegrar ocorao, de sorte quesempre confessareis que nunca empregastes o tempo em coisa totil, gostosa, divertida, esumamente necessria; em fim direis que viveste sempre cegos, eque s este ensino vos abriuos olhos do corpo, e do entendimento. 1Santa Rita revela que tudo o que ensinar na AHI ser fiel sdoutrinas ensinadas pelospadres da Congregao do Oratrio. Apela necessidade de adquiririnstrumentos eequipamentos para a realizao de experincias fundamentais para acompreenso da naturezae avano do conhecimento, referindo por exemplo os investimentosrealizados pelaUniversidade de Bolonha em mquinas necessrias para a realizaodessas experincias.2 EmPortugal diz que os padres da Congregao do Oratrio, os ClrigosRegulares, os CnegosRegrantes, e o Colgio dos Ingleses todos se dedicavam ao estudoe ensino desta novafilosofia. Referindo tambm que o rei D. Joo V mandou vir deFrana e Inglaterra preciosasmquinas para instruo da Corte3, oferecendo-as ao Colgio de NossaSenhora dasNecessidades de Lisboa, frequentado por fidalgos, nobres eoutros os curiosos quefrequentavam estas aulas todas as semanas para recrearem-se noincomparvel divertimento 1 [AHI, T3, C18, p. 144]. 2 [AHI, T3, C18,p.138]. 3 Banha Andrade no seu estudo A Reforma Pombalina dosestudos secundrios (1759 1771), faz tambmreferncia a este facto, citando esta mesma conferncia: [AHI, T3,C18, p.138].
  • 29que eram as experincias cientficas.Faz uma interessante apreciao do estado da cincia na Europa, e aadeso do povo aesta nova cincia. Dizendo que em Frana no existia um prncipe,fidalgo, nobre, mecnico,plebeu, mulher, nem mancebo de qualquer estado, que no fosse umbom filsofo.E quase o mesmo se passava em Inglaterra, e tambm em Itlia eAlemanha. Em Espanhaestava a comear mas com grande fora, no entanto, refere o autorcom agravo, em Portugals na Corte se verificava essa adeso ao conhecimento, fora dela spor especial fortuna,fortuna essa que tambm eles tinham na AHI onde quis Deus com oterramoto trazer-noseste insigne Filosofo, que aprendeu em Frana, Itlia, eultimamente, por ocupar bem otempo, na Congregao do Oratrio de Lisboa, onde (diz ele) ouviraa melhor Filosofiamoderna Cptica, isto , que s busca a verdade sem paixo porautor, nem sistema algum()1 Preocupa-se em dizer que a Igreja Catlica de Roma em nada seope a esta cincia,muito pelo contrrio, e que a Fsica e Metafsica de Aristteles, soas origens da Cincia, eque apesar de terem sido proibidas no sculo XIII pela Igreja,isso eram coisas do passado.Assume tambm uma posio de homem religioso perante a Cincia, ondeesta ltima seriasempre um olhar para a obra de Deus, uma procura pelos segredosque com o tempo foramesquecidos pelo homem. Faz referncia s experincias da AcademiaReal das Cincias deParis e s suas memrias publicadas no ano de 1713, prosseguindocom uma interessantedefinio do que era a Fsica:Fsica ou Filosofia Natural (disse o Filosofo) uma cincia quetrata de todas as coisasnaturais, dando a razo e apontando a causa de todos os efeitosordinrios e extraordinriosque vemos com os nossos olhos. Trata dos cus, dos astros e dosmeteoros, declara qual sejaa causa das chuvas e dos ventos, a origem das mars e das fontes.Trata de cada hum doselementos e das suas propriedades. Enfim, tudo quanto temos naterra objecto destacuriosssima e admirvel cincia, merecendo-lhe especial ateno asplantas, os brutos, e ohomem com tudo o que serve aos seus sentidos, como so a luz quenos alumia, as cores quenos alegram, os sons que nos divertem, o cheiro e sabores quenos recreiam, e o movimentode muitas coisas que nos admiram. Isto suposto, para sereconhecer qualquer coisa o melhormeio examinar, e conhecer as partes de que constam todas ascoisas constam de duaspartes, a que os Filsofos chamam Princpios, que vem a ser Matriae Forma. ()2No tratamento destes assuntos, Santa Rita demonstra ser umerudito conhecedor doestado da Cincia e atento aos seus avanos, principalmente emFrana, conhecedor, como j 1 [AHI, T3, C18, p.139]. 2 [AHI, t3, c19,p.145].
  • 30referido, das memrias da Academia Real de Cincias de Paris, mastambm de obras como oJournal de Savants s quais se refere como sua fonte1 ou sMmoires de Trevoux2.(…) eu tenho lido as obras da Academia Real das Cincias, asmemrias de Trevoux, equase todos os livros de Filosofia natural, chamadamoderna(…)3Mas atento tambm ao que se escrevia em Portugal, e sobre estesassuntos da cinciafaz diversas referncias Recreao Filosfica de Teodoro de Almeida,obra contemporneae de mbito semelhante AHI. Por exemplo falando novamente sobremquinas einstrumentos de experincias refere que estampas delas trazemmuitos livros Franceses e aRecreao Filosfica4, lamentando o facto de a AHI no possuirnenhumas mquinas5 pararealizar experincias e nem estampas para mostrar, podendo apenasrecorrer-se das palavraspara descreve-las.Tratou tambm de um problema bastante actual para na pocainerente aosdesenvolvimentos que se assistiam no campo cientfico. Aproblemtica da nomenclaturacientfica, como o autor o afirma, que pela novidade dascontastes descobertas existiammuitas palavras e nomes novos, muitos deles no existentes emPortugus, aos quais eramdados diminutivos, mas que muitos modernos abominavam optandopelo latim.Transportando esse problema para a sua academia, decidiuresolv-lo simplificando oconhecimento de forma a torn-lo mais acessvel por todos, quemais uma vez expressa o seusentido crtico desmarcando-se do elitismo erudito:() ns porm que somos uns ignorantes, e no temos, como tais, quetemer censuras depouco polidos para melhor nos explicarmos e percebermos,chamamos ar ao ar grosso, e ao1 Referncia ao Le Journal des Savans, posteriormente intituladoJournal des Savants, como fonte do estava aescrever: [AHI, T3, C20, p.165]. 2 A respeito de uma dissertaosobre os efeitos das pedras gatas na sade termina com a opinio dosfilsofosmodernos sobre o assunto referenciando nas Mmoires de Trvoux: OReverendssimo Padre D.ThomazMangeart Monge de S. Bento da Congregao de S. Vannes, eAntiqurio do Duque imprimiu em Bruxelas noano de 1753 uma doutssima dissertao a respeito deste fenmeno,que muitos louvam os padres de Trvouxnas memrias do mesmo ano. [AHI, T7, C31, p. 368]. 3 [AHI, T4,C3, p.17] 4 [AHI, T3, C49, p.389]. 5 Ainda sobre mquinas, e namesma conferncia referenciada acima, faz referncia aos artficesportuguesesBento de Moura e Manuel ngelo Vila que reduziram a mquinapneumtica e melhoraram o seu funcionamentoe facilidade de utilizao, tendo com isso sido bastantereconhecidos nos reinos estrangeiros.
  • 31ar subtilssimo chamamos arzinho.1Santa Rita conferiu obra um carcter internacional, ou universal,sempre presente,expresso pelas inmeras referncias tanto a entidadesestrangeiras, como aos mais diversoslugares do mundo. Compreender e dar a conhecer este mundo erafundamental, e tambm umdos temas que mais curiosidade despertava nos leitores, vidos emouvir essas histrias delugares longnquos ou de saber o que se passava nos outros reinosda Europa. E Santa Ritaalimenta esse ensejo, principalmente com histrias do Oriente,sobretudo da ndia e China,mas tambm das Amricas, sobretudo do Brasil, e dos territriosportugueses da frica,Moambique e Angola. Pelas palavras dos diversos eruditos da suaAcademia, d a entenderque possua conhecimentos profundos e actuais, talvez fundados naexperincia pessoal, etroca de impresses com missionrios destacados, sobretudo da siaPortuguesa. Os temas ehistrias so inmeros e ilustraremos aqui algumas que pareceminteressantes no esprito daobra. Um dos problemas que um homem do mundo, viajante eaventureiro, teria que enfrentarnesses lugares remotos era o da comunicao. Sobre Goa,exemplifica, ora da voz prprioErmito, ora dizendo as ter ouvido de outros membros religiososde Santo Agostinho, que nasmisses religiosas os problemas lingusticos, das tradues dasagrada escritura para osdialectos e lnguas das colnias, era um verdadeiro entrave.Referindo tambm as dificuldadesde pronunciao do Portugus em Goa e em Bengala. Elevando asespecificidades da lnguaportuguesa, traduzidas por exemplo no significado da palavrasaudade:A lngua Castelhana excelente e abundantssima de palavras, pormfalta-lhe uma paraexpressar e dizer de uma vez aquela aflio que padece uma pessoaquando est ausente deoutra, a quem ama, a que no nosso Portugus se explicaadmiravelmente com a palavrasaudade.2Entre as diversas incurses pelo mundo, Santa Rita dedica largaspginas China,colocando todas as personagens da academia a contar as suasexperincias passadas nesseImprio. Ser possvel que o autor tenha participado em missesreligiosas ou diplomticasneste pas, ou que pelo menos tenha tido contacto com pessoas queo fizeram. Talvez tambmtenha tido acesso a documentos relacionados com as acesdiplomticas da Corte Portuguesana China ocorridas durante os incios do sculo XVIII,nomeadamente da misso diplomtica1 [AHI, T3, C49, p.390]. 2 [AHI, T3, C33, p. 261].
  • 32do embaixador Alexandre Metlo de Sousa Menezes ordenada porD.JooV para negociar como Imperador da China. Participaram nesta misso diversosreligiosos, missionrios, esoldados, que no dia 12 de Agosto de 1725 partiram na fragata deNossa Senhora da Oliveiraem direco a Macau.1H muito tempo, (disse o Telogo), desejamos saber nesta Academianotcias especiais doImprio da China, e agora se excita mais o nosso desejo, ouvindoa felicssima notcia deinumerveis pessoas que no dito Imprio abraaram a nossa FCatlica, fruto do zelo dosexemplarssimos Religiosos da Ordem dos Pregadores, que com aconverso de um Eunuco,dizem, conseguiram a converso do Imperador. A notcia to felizque eu duvido dela, noobstante escrever-me de Manilhas meu irmo, que repetidas vezesentra no Imprio. ()O senhor Ermito, que tantos anos habitou naquele Imprio, podiaagora dar-nos notcia detodo, e o mesmo podiam fazer os nossos companheiros que o viram.Eu direi, (respondeu oSoldado), porque vim de l h menos tempo, e para evitar confuso,primeiro tratarei doImprio, isto das suas provncias, terras e frutos, depois dagente, letras e costumes, eultimamente do princpio da sua Cristandade e progressos dela, ato tempo, em que vimpara Portugal.2() porque estes (os europeus) no podem entrar no Imprio, senocomo eu, e outros nafamlia de algum Embaixador, ou por companheiro de Missionrio, scom o seu fato, semcoisa de comrcio. Assim entrei a primeira vez com oReverendssimo Padre Mestre Fr. JooSalzedo, da Ordem dos Pregadores, de Manilas; e segunda, com oExcelentssimo eReverendssimo Senhor D. Fr. Francisco da Purificao, Bispo dePequim, da Ordem deSanto Agostinho; e o nosso irmo Ermito com o EmbaixadorAlexandre Metlo de SousaMenezes.3Se o autor da AHI participou pessoalmente nessa misso diplomticano sabemos,contudo as suas personagens nela participaram, e fica claro queo prprio possua profundos 1 O relato desta misso encontra-sedetalhadamente descrito na Abreviada Relao da Embaixada, que aSerenssima Majestade do Senhor D. Joo V Rei de Portugal, mandouao Imperador da China, e Tartaria YumChim, pelo seu Embaixador Alexandre Metello de Souza Menezes ()in MIRANDA, Francisco de S e,Coleo e Escolha de Bons Ditos, e Pensamentos Moraes, Politicos,e Graciozos., Oficina de Francisco Borgesde Souza, Lisboa, 1779, pp.127-178. Contudo no foi possvelapurar os nomes dos frades e religiosos queparticiparam nesta viagem, onde se poderia encontrar o autorFrei Joaquim de Santa Rita. Entre diversasreferncias possveis: () quando porm me preparava para vir detodo para este Reino na Nau que foi buscaro nosso Embaixador () [AHI, T4, C42, p.334]. 2 [AHI, T4, C21,p.161]. 3 [AHI, T4, C24, pp.185-186].
  • 33conhecimentos sobre a cultura e hbitos da China1. So tambmrelatadas imensas histrias epormenores dessa embaixada que no vm descritos no documentoacima citado em nota derodap. Com fico ou no, Santa Rita deixa-nos uma singular visosetecentista de umImprio e de uma Cultura remota e nica. Faz uma interessantereferncia s elites eruditas daChina e forma como hierarquizavam os seus graus de conhecimentoe a um tipo deacademias que costumavam formar entre si.Nas casas dos poderosos so Mestres os Bacharis, e tambm h muitosestudosparticulares. Depois que alcanam o grau, ainda que seja oprimeiro de Bacharel, noreconhecem Mestre, mas sim formam entre si uma Academias, nasquais se juntam algumasvezes em cada ms, um deles abre um livro, e d o ponto, sobre oqual todos compem, edepois conferem as composies. 2Como filsofo e homem erudito, no poderia falar da China e doOriente semmencionar o memorvel Confcio tecendo-lhe enormes elogios:() floresceu neste Imprio o memorvel Filsofo Confcio, ouConfuso, homemsapientssimo e do melhor gnio e bondade de que h tradio noOriente, nascido para bemdas Republicas de todo; porque a todos os Reinos, e Impriosintentou reformar comadmirveis Leis, para observncia da natural; teve muitos eadmirveis discpulos; governoumuitos e muitos Reinos com especial pacincia para tolerar aresistncia dos brbaros (…)3O tema da China parecia ser de extrema importncia e interessepara o pas, no spelos esforos diplomticos que estavam a ser feitos durante agovernao de D. Joo V,como pela presena portuguesa em Macau e o comrcio com o Oriente.Santa Rita dedicatambm longas pginas a Macau iniciando o tema com as palavras:Falta dar-vos noticia,(disse o Ermito) da Ilha e cidade de Macau, porta singular poronde a nao Portuguesaintroduziu a F Catlica na China (…). 4 Relatando que a situaonaquele territrio no eraa melhor, o comrcio e as relaes com os chineses estavamdeteriorados:1 Nessa sua erudio alicerada sobre o imprio chins, chega mesmo acorrigir a obra do historiador Manuel deFaria e Sousa. como erradamente imprimiram os que deram ao preloa historia da China do grande Manuel deFaria e Sousa. [AHI, T4, C37, p.302]. 2 [AHI, T4, C25, p.197]. 3[AHI, T4, C27, p.212]. 4 [AHI, T4, C42, p.329].
  • 34H poucos anos ouo queixarem-se os que l vivem, de que o comrcioest diminuto, afidelidade nos Chinas extinta, e que s a pobreza cresce cadadia, e consolando eu a todos,os que me escreviam estas notcias tristes, outro amigo de toda averdade, compadecido deque eu gastasse o tempo e papel de balde, me mandou dizer que aCidade cada vez est maisrica e aumentada, e s era a verdade menos, nos que me escreviam,os quais para evitaremmimos, se fingiam alcanados.1O carcter internacional e universal da obra contudo no se limitaChina, comoreferido anteriormente tambm as ndias e sobretudo Goa assuntorecorrente ao longo detoda a obra. Os eruditos da AHI, todos homens viajados, vorelatando as suas histrias umpouco por todas as colnias portuguesas, fazendo referncias tambmaos pases vizinhosdessas, e outras histrias chegavam tambm academia atravs deconversas com outros.2Uma dessas histrias contada na primeira pessoa por um Romeirochamado Joo de Cristo,que pedindo licena para participar na Conferncia partilha na AHIas suas aventuras pelaTartria no Oriente.Concorrem este ano mais que nunca os Romeiros a este deliciosostio, e entre eles muitosque fazem vid
  • Publicaciones Similares