a academia dos humildes e ignorantes (1758 – 1770): as letras e
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Pedro F. Catarino Lus
A Academia dos Humildes e Ignorantes (1758 1770): as letras e as luzes para o homem comum.
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2009
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Autor: Pedro F. Catarino Lus.
Ttulo: A Academia dos Humildes e Ignorantes (1758 1770): as letras e as luzes para o
homem comum.
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009.
Dissertao de Mestrado em Histria Moderna: Poderes, Ideias e Instituies, apresentada
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao da Professora Doutora
Isabel Ferreira da Mota.
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NDICE
1. Introduo ....
5
2. Academias imaginrias e sociabilidade intelectual ficcionada na literatura setecentista
7
3. A Academia dos Humildes e Ignorantes ..
16
3.1. As conferncias da academia: temas e fontes ...
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3.2. Do aplauso crtica: a opinio pblica e o bem comum ..
55
3.3. Do anonimato para a luz: Frei Joaquim de Santa Rita ......
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3.4. Impresso e Publicao: o negcio de um sucesso literrio .
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4. Consideraes finais ....
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5. Fontes e Bibliografia .....
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Anexos .....
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Abreviaturas Utilizadas
AHI Academia dos Humildes e Ignorantes
ANTT Arquivos Nacionais / Torre do Tombo
BGUC Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
BNL Biblioteca Nacional de Lisboa
Nota sobre metodologia utilizada em transcries: normalizou-se a escrita para a linguagem
contempornea, mantendo-se nalguns casos os nomes ou ttulos conforme o original.
Todas as citaes, transcries ou referncias obra Academida dos Humildes e Ignorantes
de Joaquim de Santa Rita, seguem a terminologia [AHI, T_, C_, p._]: AHI Academia dos
Humildes e Ignorantes; T N do Tomo, C N da Conferncia; p. pgina. Para uma
relao entre o ano exacto de publicao de cada conferncia ou transcrio consultar tabela
em anexo relativa s datas de impresso da obra.
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1. Introduo
IGNORANTE. Falto de cincia. Que no tem letras.1
O universo literrio do sculo XVIII deixou-nos relquias e tesouros do imaginrio
humano, que impressos pelo vapor tipogrfico do sculo, alimentando vidos comerciantes de
livros indiferentes aos valores contidos nas mercadorias que vendiam, permitem-nos hoje
olhar para um magnfico espao de ideias representativas de uma sociedade que escreveu o
prefcio dos tempos modernos. algures nesse espao de ideias que a presente dissertao
encontrou as suas musas, pretendendo aqui inaugurar dois temas no campo da Histria das
Ideias e da Cultura. Por um lado mostrar um campo da literatura portuguesa setecentista que
transportou a sociabilidade intelectual da poca para a fico. Por outro, trazer luz os
resultados de um processo de investigao que teve como objecto de estudo um dos expoentes
mximos dessa fico literria, a Academia dos Humildes e Ignorantes.
Seria impossvel desassociar estes temas a duas matrias amplamente estudadas no
campo historiogrfico, o movimento filosfico das luzes ou Iluminismo, e a Repblica das
Letras, sobretudo porque o que ir aqui ser tratado apresenta-se como uma materializao
prtica desse iderio filosfico. Enquadrado tambm na temtica da Histria do livro, das
impresses e do negcio livreiro, da crtica e da opinio pblica, e da Histria das academias
literrias e cientficas que comearam a surgir por toda Europa desde a segunda metade do
sculo XVI.
Para aqueles que colocam o movimento das luzes em Portugal como um produto de
estrangeirados, para aqueles que o criticam por ter sido um reservado movimento de elites,
para aqueles que o catalogam depreciando-o e tambm para os que se preocupam em ter um
iluminismo portugus, prope-se aqui uma expresso de um de iluminismo popular, assente
na obra de um homem que decidiu criar uma academia fictcia, recorrendo ao engenho
literrio. Numa poca em que as academias estavam em voga, renascendo em nome da
Histria ou da Literatura, so inmeros os nomes das novas academias de eruditos do sculo
XVIII. Mas todas elas com uma particularidade, as suas portas apenas se abriram para uma
estrita elite social de uma sociedade de classes, que mergulhada num certo elitismo intelectual
traiu um dos objectivos da filosofia do esclarecimento, o de levar as luzes da razo a todos.
nessa particularidade que a Academia dos Humildes e Ignorantes se distingue de todas as
outras, pois era dedicada a um pblico muito especial, a uma outra classe, mais inferior, mas
muito maior. Para os humildes e ignorantes, para os pobres e iletrados, para os trabalhadores,
1 BLUTEAU, Raphael, Vocabulrio Portuguez e Latino, Tomo IV, 1713, p. 43.
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abrem-se as portas do saber ao homem comum. Frei Joaquim de Santa Rita fundou assim a
sua academia para o povo.
Uma obra literria setecentista com o objectivo de compendiar o conhecimento, e
oferecer uma histria universal, inserida num movimento literrio bastante comum na poca,
inspirado pelos enciclopedistas, num exerccio de divulgao de conhecimentos e sobretudo
da nova Filosofia Natural, onde livros e peridicos transformaram-se em canais de
transmisso e sobretudo de vulgarizao de ideias. Ideias tocadas pelos ideais dos homens das
luzes, que ao mesmo tempo alimentaram um negcio bastante lucrativo.
O objectivo central deste trabalho ser assim o de revelar uma Academia dos
Humildes e Ignorantes, enquanto obra literria portuguesa polmica do sculo XVIII.
Procurando sobretudo trazer novas luzes sobre os seus contedos, e sobre o seu ignorado mas
erudito e informado autor. Neste sentido a obra ser analisada como uma materializao do
esprito das luzes, enquanto compndio do saber oferecido invulgarmente ao homem comum.
Esta obra, atravs da representao sociolgica de uma academia imaginria, com o objectivo
enciclopdico de deter nas suas pginas os mais diversos temas, foi alvo de crticas, discusso
pblica, polmicas, intrigas, e interesses econmicos. O que ampliou este estudo para uma
perspectivao da obra enquanto produto de um mercado livreiro em forte desenvolvimento,
atravs da anlise de dados relativos sua publicao, impresso e comercializao, que
adiantando algumas concluses parece ter sido um sucesso literrio, no s pelas suas
inmeras reedies, como tambm pelo nmero de coleces que sobreviveram at hoje.
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2. Academias imaginrias e sociabilidade intelectual ficcionada na literatura
setecentista
Academia nome, que geralmente se d ao lugar, em que florescem as cincias, ou artes,
e a todo o ajuntamento de homens doutos, que especulam, ensinam, e adiantam as mesmas
artes ou cincias. Os Gregos foram os primeiros inventores delas, e causa de que os
Romanos, que foram seus discpulos, fundassem depois muitas, a que tambm na Europa
chamaram Universidades, deixando o nome Academia como prprio s para as Juntas dos
homens doutos, que no ensinam discpulos, e s cuidam no adiantamento das cincias,
artes, ou verdade das histrias com os estudos, e escritos. 1
O charme literrio e cientfico do sculo XVIII ficou registado nas memrias do tempo
pelas inmeras obras e escritos, frutos de um gnio criador, do homem das letras inspirado
pelas luzes. Desde os finais do sculo XVII comeam a proliferar diversas academias de
intelectuais e diletantes, das artes e das letras, e mais tarde da cincia. A estas academias
podemos ver sempre associado o nome de ilustres eruditos, personagens carismticas,
reunidas por uma paixo comum: o amor ao conhecimento, s letras e s artes. Unidos pela
curiosidade, pela vontade de resolver os mistrios da vida e do mundo, do universo e da
humanidade, mistrios esses que desde os princpios dos tempos assombram a mente do
homem. Inspiradas pela Academia de Plato, onde um membro poderia seguir qualquer
caminho do conhecimento no lhe sendo imposto nenhum programa fixo de aprendizagem,
vemos nascer agora grupos de intelectuais, que juntos por essa vontade de partilha de ideias e
de discusso de temas, como que se de nada servisse a erudio no havendo com quem a
partilhar, deram origem a um interessante fenmeno de sociabilidade intelectual, que assumiu
diversos contornos e grandezas. Tertlias, sales de leitura, botequins, livrarias, bibliotecas,
universidades, academias, ou lojas manicas, todos jardins do conhecimento, mais ou menos
institucionalizados, mais ou menos discretos, mais ou menos privados, tiveram em comum
serem um espao dimensional de relacionamento de indivduos e de consubstanciao de
ideias que firmaram uma crescente crena ideolgica da primazia da razo. Esta proliferao
de espaos de interaco intelectual, trouxe uma nova consciencializao cientfica e o
desabrochar de uma nova filosofia natural, a constante e inquieta curiosidade humana por
desvendar o universo, por via de um racionalismo inerente ou de uma mera paixo pela arte, a
elevao do conhecimento a uma nova divindade, uma luz exaltada para fulminar as trevas
1 [AHI, T7, C16, p. 191].
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que mergulharam o mundo num negro lago de mitos e medos, criaram um novo campo de
ideias durante o sculo das luzes.
Surge assim representada em diversas obras, uma sociabilidade intelectual da poca,
imaginada e recriada pelo artfice literrio, colocando as novas correntes de um pensamento
iluminado no papel de personagens intelectuais interagindo em espaos sociais. Estas obras
unem-se curiosamente por um sentido prtico das luzes atravs de uma tentativa sempre
presente de compilao do conhecimento, com a aspirao de contribuir para a compreenso
do mundo, da vida e do universo, elevando a Histria e a Filosofia Natural a um novo
patamar. atravs da representao cnica de dilogos entre eruditos, palestras, conferncias
ou aulas que podemos observar um conjunto de obras de autores portugueses a dar vida s
letras e s luzes. Desde a Academia dos Humildes e Ignorantes1 de Joaquim de Santa Rita,
tema central deste estudo, aos Estrangeiros no Lima2 de Manuel Gomes de Lima Bezerra de
1785 e 1791, Academia Singular e Universal do Frei Jos de Jesus Maria de 1737, passando
pela Palestra Admirvel3 de Jos ngelo de Morais, que iniciou a sua publicao em 1759, ou
a sublime Recreao Filosfica4 do erudito Padre Teodoro de Almeida, cujo primeiro tomo
foi publicado em 1751. Estas obras unem-se tambm por encarnarem um esprito de partilha
de ideias e de democratizao do conhecimento, pretendendo fazer chegar a sua obra a
todos, forma tambm de educao do povo, combate ociosidade e em ltima instncia
desenvolvimento da nao. Em conjunto representam um movimento de vulgarizao do
saber, atravs de uma divulgao sistemtica de todo o tipo de assuntos.
1 Ttulos completos: Academia dos humildes, e ignorantes: dialogo entre hum theologo, hum philosopho, um
ermito, e hum soldado, no sitio de Nossa Senhora da Consolao: obra utilissma para todas as pessoas
ecclesiasticas e seculares que no tem livrarias suas, nem tempo para se aproveitar das pblicas...., Tomos I a
VI, Lisboa de 1760 a 1762; Academia dos humildes, e ignorantes: no sitio de Nossa Senhora da Consolao
sua protectora, dialogo entre hum theologo, hum letrado, um filosofo, hum ermito, hum estudante, e hum
soldado, Tomos VII e VIII, Lisboa, 1765 e 1770. 2 BEZERRA, Manuel Gomes de Lima, Os Estrangeiros no Lima: ou conversaoens eruditas sobre varios pontos
de Historia Ecclesiastica, Civil, Litteraria, Natural, Genealgica, Antiguidades, Geographia, Agricultura,
Commercio Artes, e Sciencias Real Oficina da Universidade, Coimbra, Tomo I 1785 e Tomo II 1791. 3 MORAIS, Jos ngelo de, (pseud. Joz Maregelo de Osan), Palestra Admirvel, Conversao Proveitosa, E
noticia universal do Mundo. Distribuda por nmeros e semanas. Para emprego da ociosidade, desterro da
melancolia, e lio para recrear, e instruir a todo o estado de pessoas, impresso na Oficina de Francisco Borges
de Sousa, n I ao n XII, Lisboa, 1759; n XIV ao n XVIII, Lisboa, 1760. 4 ALMEIDA, Teodoro de, Recreaso Filozofica, ou dialogo sobre a Filozofia Natural, para instruo de
pessoas curiozas, que no frequentaram as aulas, 10 Tomos, Lisboa, [1751- 1752; 1757; 1761-1762; 1785;
1792-1793; 1800].
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A Palestra Admirvel, Conversao Proveitosa, e Notcia Universal do Mundo,
prope ser uma obra para emprego da ociosidade, desterro da melancolia, e lio para recrear
e instruir todo o estado de pessoas. Impressa em folhetos de 8 pginas, sai o primeiro nmero
impresso em 1759, um ano aps o lanamento da AHI e na mesma oficina de Francisco
Borges de Sousa. Os seus folhetos eram todos paginados de 1 a 8, sem uma paginao
contnua que seria o normal neste tipo de obras para se compilarem os diversos folhetos em
tomos. Teve uma vida curta, terminando a sua impresso no nmero 18 em 1760. Apesar de o
ttulo da obra apresentar alguns objectivos universalistas como os acima mencionados, o seu
contedo fica muito aqum do proposto. As palestras vo ganhando voz de uma personagem
de nome Camilo, que era um homem nobre de sangue, erudito, perito no estudo das letras e
possuidor de uma abastada fortuna. Um nobre que gostava mais da vida ociosa e descansada
do que empregar o seu tempo em algo de til, passando os seus dias em jogos, banquetes,
bailes e outros divertimentos. Mas como era inclinado aos livros, no se esquecia totalmente
da sua lio1 at que um certo dia ao ler um livro descobriu que a ociosidade era algo de
demonaco, e inspirado por um certo homem, decidiu largar a Corte e ir passar o resto da sua
vida num retiro humilde, na Vila de Serpa no Alentejo. Foi assim que nos seus passeios pelo
rio Guadiana comeou a passar as tardes com quem com ele quisesse aprender e partilhar
conhecimentos. Estas tardes transformam-se em palestras que se vo assim desdobrando na
voz deste Camilo e dos seus ouvintes, onde o tema dominante a cidade e imprio de Roma,
apresentando Ovdio, Homero e Virglio como as suas principais fontes. No obstante o
limitado contedo e curta existncia destas palestras admirveis, a crtica ociosidade e aos
vcios da nobreza est bem presente.
O autor Jos ngelo de Morais2 escreveu tambm outras duas obras, igualmente
impressos em folhetos de 8, de carcter semelhante, mas sem essa componente de
1 MORAIS, Jos ngelo de, Palestra Admirvel, Conversao Proveitosa, E noticia universal do Mundo (),
Lisboa, 1759, N1, Semana 1, p.2. 2 Assinava as suas obras com o pseudnimo Joz Maregelo de Osan, anagrama do seu nome verdadeiro,
ANDRADE, Adriano da Guerra, Dicionrio de Pseudnimos e Iniciais de Escritores Portugueses, Coleco BN,
1999, p. 154. Alm das obras mencionadas foi tambm autor de: Despertador de Marte, instrues militares aos
portuguezes, Lisboa 1760; Semanas proveitosas ao vivente racional, ou modos para curar a alma enferma, e
adquirir sciencia dos segredos da natureza repartido em trinta semanas, Lisboa 1760 (que segundo o Catlogo
de Miscelneas da BGUC no passava de um ttulo); Eccos que o clarim da fama d: Postilho de Apolo,
montado no pegazoLisboa, 1761-1762, 2 vols; in FONSECA, Martinho da, Subsdios para um diccionrio de
pseudonymos, iniciaes e obras de escriptores portuguezes, Typ. Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1895,
p.48.
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sociabilidade ficcionada que aqui se pretende ilustrar. Foram elas os Mdicos Perfeitos1, e o
Discpulo Instrudo2, ambas obras com o propsito de educar e instruir o leitor. Pela anlise
das datas de impresso desta ltima e comparando-as com os folhetos da Palestra Admirvel,
fica a ideia de que ambas tero sido impressas e publicadas simultaneamente.
Foi consultado tambm um outro folheto intitulado O Occulto Instrudo3, de autor
annimo. Este apresenta-se como um objecto de divertimento, reduzindo em breve espao e
limitado volume as mais celebres histrias e factos, que seja mais fcil a todos alcana-las4.
O autor deste ttulo faz um apelo crtica inteligente e temperada, alertando para a
necessidade e importncia dos folhetos annimos darem fora e verdade a essa voz crtica. No
seu primeiro nmero refere que recorrer sempre que necessrio ao dilogo, pois este era o
mtodo seguido por homens de grande literatura:
Muitas vezes por se fazer mais fcil a percepo se escrever em forma de Dialogo, isto
principalmente ter lugar na Matemtica, e Fsica, conforme a matria o pedir. Este mtodo
seguido de homens de grande literatura. O infatigvel Athanasio Kirker seguiu este estilo
em algumas das suas excelentes obras, e nas lies Fsicas do Abbade Nollet (alm de
outros) temos este exemplo; nem isto novo na Lngua Portuguesa, porque na estimadssima
Recreao Filosfica se observa o mesmo que referimos.5
Passemos ento a essa obra mencionada no Oculto Instrudo, a Recreao Filosfica
do padre Teodoro de Almeida. Em 1751 lanado o primeiro volume desta enigmtica obra,
iniciado com um discurso preliminar sobre a Histria da Filosofia, onde o autor tece uma
explicao sucinta das 5 primeiras academias que tero existido. A obra dividida em Tardes
de recreao, que se iam passando numa casa com vistas para o mar, entre as conversas de
Teodsio e Eugnio, eruditas personagens. O objectivo proposto por Teodoro de Almeida
1 MORAIS, Jos ngelo de, (pseud. Joz Maregelo de Osan), Os Mdicos Perfeitos: ou Novo Methodo de Curar
todas as enfermidades, descoberto, e explicado pelos Mestres de mais subtil engenho, e applicado aos
enfermos, pelos Doutores mais sbios., Impresso na Oficina de Francisco Borges de Sousa, N VI, Lisboa, 1759. 2 MORAIS, Jos ngelo de, (pseud. Joz Maregelo de Osan), O Discpulo Instrudo pelos Mestres mais Sbios
nos segredos Natureaes das Sciencias, distribudo por semanas, em perguntas, e respostas, nas quaes ters,
curioso leytor, no s lio, que te recree o animo, mas tambem (com pouco trabalho) adquirirs huma cabal
noticia dos naturaes segredos, que com tanto desvelo, e estudo procuraro indagar os antigos, e modernos
Escritores., Impresso na Oficina de Francisco Borges de Sousa, Semana Sexta, Lisboa, 1759. 3 [Annimo], O Occulto Instrudo, que para licito divertimento e honesta recreao se h de publicar dividido
em diferentes partes, 18 Nmeros, na Oficina de Domingos Rodrigues, Lisboa, 1756-1757. 4 Ibidem, N1, p.1. 5 Ibidem, N1, p.7.
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tambm a divulgao de conhecimentos teis a todas as classes de indivduos e ser dentro da
esfera de anlise deste estudo o exemplo mais prximo da AHI e muito provavelmente uma
das suas principais fontes de inspirao.1
Assiste-se assim a um tratamento eloquente entre as personagens, carregadas de uma
erudio intelectual, interessadas em todos os assuntos, das novidades da corte, do estado da
nao, da poltica, das notcias do estrangeiro, da sociedade em geral, descendo sempre aos
grandes assuntos da filosofia, da Histria e da cincia. O autor, sempre atento aos progressos
cientficos soube habilmente criar um espao de aprendizagem no universo literrio, com a
constante preocupao de tornar o saber acessvel e fcil. Expresso por exemplo na sua crtica
ao recurso da lngua latina por parte dos eruditos para discutir as matrias da cincia,
dificultando o acesso ao conhecimento a todos os que no dominavam o latim, parecendo que
esses mesmos intelectuais faziam de propsito para ocultar as verdades. A queda do latim
sem dvida uma preocupao das luzes, pois representava um passo importante para tornar a
cincia e a filosofia acessvel a todos. Sobre a utilizao do latim nas aulas o autor escreveu:
mais serviam de confundir, que de instruir, mais de escurecer a verdade, que de a dar a
conhecer. 2
A Escola da Doutrina Crist3 do padre jesuta Joo da Fonseca, obra impressa em
vora no ano de 1688, reeditada mais tarde em 1750, apresenta-se como uma recriao
literria de uma escola, onde o autor recorrendo forma dialogstica, sobretudo em perguntas
e repostas, coloca em cena quatro personagens: Marcelino um filsofo, Diodoro um telogo e
dois estudantes supostamente a assistir aos dilogos desses dois eruditos. A obra tem
essencialmente um carcter religioso e cumpre um programa de ensinamento cristo4.
1 () cria uma espcie de matriz alternativa ao esprito enciclopdico, condensando um vasto leque de
saberes, tcnicas e ensinamentos filosficos expurgados dos perigos ideolgicos do projecto francs e expostos
por meio de uma engenhosa fabricao de situaes de aprendizagem ilustrativas e ldicas in ARAJO,
Ana Cristina, A Cultura das Luzes em Portugal Temas e Problemas, Livros Horizonte, 2003, p. 16. 2 ALMEIDA, Teodoro de, Recreaso Filozofica, ou dialogo sobre a Filozofia Natural, para instruo de
pessoas curiozas, que no frequentaram as aulas, Tarde Primeira, tomo I, 1751, p.3. 3 FONSECA, Joo da, Escola da Doutrina Christam, em que se ensina o que he o obrigado a saber o Christam.
Ordenada por modo de Dialogo entre dous Estudantes hum Filozofo, por nome Marcelino, & outro Theologo,
por nome Diodoro. Com exemplos accomodados s materias, que se tratam..., Oficina da Universidade, vora,
1688, obra tambm reeditada em 1750. 4 Esta obra foi analisada luz da conceptualizao do conceito de pobreza nos finais do sc. XVII e incios do
sc. XVIII, com referncia ao conceito de bem-aventuranas dado por Joo da Fonseca no sentido de
desprendimento das riquezas materiais como forma de elevao espiritual, na obra: LOPES, Maria Antnia,
Pobreza, Assistncia e Controlo Social. Coimbra (1750 1850), Viseu, 2000, Vol.1, p.49.
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Outro exemplo o Governo do Mundo em Seco1 obra impressa em Lisboa no ano de
1748, da autoria de Manuel Jos de Paiva (1706 - ?), onde tambm este recorre ao dilogo de
personagens eruditas, nomeadamente um Letrado, o seu Escrevente, e as mais pessoas que se
propuserem. O seu autor fala nos perigos da riqueza e na condenao dos que procuram
enriquecer, louvando a maior segurana dos que vivem remediados e na pobreza.2
A Academia Singular e Universal3 do Frei Jos de Jesus Maria de 1737, poder
tambm ser includa nesta abordagem, pois apesar do seu carcter religioso, no deixa de se
apresentar como um projecto de uma Academia Universal, inspirada na Academia de Plato,
com intenes de compreender todos os estados, operaes e modos de vida humanos,
cincia, poltica e Histria. No entanto recorre essencialmente aos textos bblicos e a fontes
teolgicas ficando muito aqum do projecto que prenuncia.
Incluiremos tambm neste grupo de academias imaginrias, outras duas academias
referidas no estudo de Joo Palma Ferreira como pardias acadmicas. A saber, a Academia
dos Sovelantes4 e a Academia dos Fleumticos. Esta ltima surge na publicao Folheto de
ambas Lisboas, de 1730, onde se simulava em estilo de pardia uma academia na rua do
Correo5. Merece tambm meno a obra Corte na Aldeia e Noites de Inverno, de 1619 de
1 PAIVA, Manuel Jos de, (Pseud. Silvestre Silverio da Silveira Silva), Governo do Mundo em Seco, palavras
embrulhadas em papis, ou escritorio da razam, exposto no progresso de hum Dialogo, em que so
interlocutores hum Letrado, o seu Escrevente, e as mais pessoas que se propuzerem., Oficina de Francisco Luiz
Ameno, Impressor da Congregao Cameraria da S. Igreja de Lisboa, Lisboa, 1748. 2 Sobre este assunto ver LOPES, Maria Antnia, Pobreza, Assistncia e Controlo Social. Coimbra (1750
1850), Viseu, 2000, Vol.1, p.88. 3 MARIA, Jos de Jesus, Academia Singular, e Universal, Histrica, Moral e Politica, Eclesistica, Scientifica,
e Chronologica, Tomo nico, Oficina de Pedro Ferreiro, Impressor da Augustissima Rainha N. Senhora,
Lisboa, 1737. 4 Sobre esta Academia nada se adianta alm do referido no estudo mencionado. Ter sido uma pardia moda
das academias que surge referida num documento manuscrito do sculo XVI. Ver: FERREIRA, Joo Palma,
Academias Literrias dos Sculos XVII e XVIII, Lisboa, 1982, pp. 113 114. 5 Folheto de Ambas [Gravura contendo ao centro, numa circunferncia, a mo direita com um compasso,
ladeado por instrumentos msicos] Lisboas. o n1 de uma publicao peridica que teve 26 nmeros, nem
todos com o mesmo ttulo, e de que foi autor Jernimo Tavares Mascarenhas de Tvora, alguns da autoria do P.
Victorino Jos da Costa. Seguem-se alguns nmeros: () Certame (Aqui e comea a ler o titulo desta obra.)
que celebraram os Acadmicos fleumticos da rua do Caldeira, no territrio da Cotovia () Ano 1731()
Oposies da Academia fleumtica, quando vagou a Cadeira de Retrica por falecimento de Joo de Almeida,
Careca das Cozinhas.() in ALMEIDA, M. Lopes de (Dir.), Catlogo da Coleco de Miscelneas (Vols.
CCLXXXI a CCCLXXV), Publicaes da Biblioteca Geral da Universidade, Coimbra, 1970, pp.142-143. Da
autoria de Vitorino Jos da Costa: Apresentao de Joze Rato na Academia Fleumtica, Lisb. 1731 in
Summario da Bibliotheca Lusitana, Oficina da Academia Real das Cincias, Lisboa, 1787, Tomo 3, p.371. Sobre
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Francisco Rodrigues Lobo que em forma de dilogo colocou as suas eruditas personagens a
tratar de matrias proveitosas, polticas e engraadas, como que em forma de tertlia: So
interlocutores principais Leonardo, um antigo corteso, outrora frequentador da casa dos Reis,
agora retirado no remanso da aldeia; o Dr. Lvio, letrado douto e prudente que antes exercera
honrados cargos de governo da justia; um jovem fidalgo, D. Jlio, afeioado caa e
leitura da histria ptria; Pndaro, estudante de bom engenho, dedicado poesia; e Solino,
velho de boa criao e inteligncia viva, que se faz notar pela agudeza e graa dos seus
ditos. A estes, que regularmente se renem nos seres de inverno em casa do primeiro, se vm
depois juntar outros: o licenciado Feliciano, amigo de Pndaro; o Prior de uma igreja vizinha,
que antes dos hbitos eclesisticos que agora usa, envergava num tempo o trajo da Corte; e
um soldado, seu irmo, de nome Alberto.1
Passaremos agora a uma outra obra j dos finais da segunda metade do sculo XVIII,
de grande interesse para este ponto, pois alm de se englobar em pleno neste conjunto aqui
definido, um exemplo mais polido e j fruto de um perodo de maior avano das letras e das
luzes em Portugal. Os dilogos dos Estrangeiros no Lima, obra escrita pelo erudito mdico
Manuel Gomes de Lima Bezerra, que junta cinco homens eruditos, todos oriundos de pases
distintos e com diferentes ofcios, a saber: Raulin o filsofo francs; Clarck o comerciante
ingls encarregado pela Sociedade Real de Londres de observar a Histria Natural de
Portugal, o estado da sua agricultura e do seu comrcio, as suas raridades e a corografia das
suas provncias e cidades; Jlio o viageiro italiano; D. Hugo o genealgico espanhol; e Lami
o mdico portugus. Esta obra, tal como o seu autor pelo interessante percurso de vida que
teve, foi estudada sob diversas perspectivas por vrios autores2. O esprito dos Estrangeiros
no Lima vai ao encontro da AHI, sem a vertente popular desta e sem o seu carcter anti-
elitista, no entanto apresentando outras componentes inovadoras. Lima Bezerra concebeu
igualmente um espao cnico ficcionado de sociabilidade intelectual, colocando cinco
eruditos a trocar ideias e a discutir assuntos com o objectivo final de estudarem a regio de
Ponte de Lima, para que pudessem contribuir para o seu desenvolvimento3. A obra os
esta academia ver tambm: FERREIRA, Joo Palma, Academias Literrias dos Sculos XVII e XVIII, Lisboa,
1982, p. 114. 1 CARVALHO, Jos G. Herculano de, Um Tipo Literrio e Humano do Barroco: O Corteso Discreto,
Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, Vol.26, Coimbra, 1963, pp. 11-12. 2 Ver os diversos estudos no volume suplementar de: BEZERRA, Manuel Gomes de Lima, Os Estrangeiros no
Lima, Edio fac-similada da 1 com um volume suplementar de estudos, 3 Volumes, Cmara Municipal de
Viana do Castelo, Viana do Castelo, 1992. 3 AMZALAK, Moses Bensabat, Os estudos econmicos de Manuel Gomes de Lima Bezerra, Instituto Superior
de Cincias Econmicas e Financeiras, Lisboa, 1959.
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Estrangeiros no Lima apresenta-se assim com um carcter de estudo econmico e social de
uma regio, elemento extremamente inovador, onde o seu autor em esprito de tertlia coloca
personagens com nacionalidades diferentes unidas pelo mesmo objectivo. O carcter de unio
internacional destes eruditos extremamente interessante, e nico neste grupo de obras que
tm sido aqui referidas.
Seja esta uma das vezes, em que um Francs com um Ingls, e um Castelhano com um
Portugus falem como sbios, e livres das preocupaes vulgares e nacionais. Os homens de
letras reconhecem por ptria o mundo inteiro. 1
Estas frases carregadas de simbolismo conferem um certo esprito manico a estas
reunies em Ponte de Lima, esse sentido de pertena a uma ptria universal, e essa expresso
de fraternidade que Lima Bezerra quis conferir s personagens, aproximam-se bastante do
ambiente vivido nas lojas manicas da poca. Esta obra est tambm inevitavelmente ligada
Sociedade dos Bons Compatriotas Amigos do Bem Publico fundada em Ponte de Lima,
mais conhecida como Sociedade Econmica de Ponte de Lima, que tinha na poca potenciais
ligaes Maonaria2. Ora neste esprito de fraternidade universal que se prope dar incio
aos dilogos e conferncias deste grupo de homens de letras que se vo prolongando por
diversos assuntos com especial destaque para questes econmicas e comerciais.3 Importa
tambm referir que Lima Bezerra foi scio fundador e secretrio de duas academias cirrgicas
no Porto, e correspondente da Academia Real das Cincias de Lisboa, nascido em Ponte de
Lima, em 1727, formou-se em Medicina, exercendo a clnica na cidade do Porto, at falecer
1 BEZERRA, Manuel Gomes de Lima, Os Estrangeiros no Lima: ou conversaoens eruditas sobre varios pontos
de Historia Ecclesiastica, Civil, Litteraria, Natural, Genealgica, Antiguidades, Geographia, Agricultura,
Commercio Artes, e Sciencias Real Oficina da Universidade, Coimbra, Tomo I 1785, p.2. 2 Sobre a hipottica ligao Maonaria da Sociedade Econmica dos Bons Compatriotas, Amigos do Bem
Pblico, de Ponte Lima, como sendo um instituio paramanica, hiptese suscitada pelo emblema da mesma
que contm simbologia declaradamente manica (3 colunas, esquadro e compasso): MARQUES, A. H. de
Oliveira, Histria da Maonaria Portuguesa, Volume 1, Das origens ao triunfo, Lisboa, 1990, p.308. Entre os
fundadores desta sociedade esteve o Conde da Barca, Antnio de Arajo de Azevedo, tambm ele provvel
maon. Ver tambm: MALAFAIA, Eurico Brando de Atade, Antnio de Arajo de Azevedo. Conde da Barca:
diplomata e estadista 1787-1817. Subsdios documentais sobre a poca e personalidade, Arquivo Distrital de
Braga, Universidade do Minho, Braga, 2004. 3 Referncia obra como uma expresso do pensamento econmico da poca, e contempornea das Memrias
Acadmicas da Academia das Cincias. Ver: CALAFATE, Pedro, Histria do Pensamento Filosfico
Portugus, Volume III, As Luzes, Lisboa 2001, p. 95.
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no ano de 1806. Foi autor de diversas obras e artigos cientficos incluindo duas Memrias
publicadas no Jornal Enciclopdico, publicadas em 1789 e 1790.1
Antes de encerrar este captulo, resta incluir neste grupo de obras a Academia dos
Humildes e Ignorantes que por ser o tema central deste estudo ser analisada com outra
profundidade nos captulos seguintes. Nesta academia imaginria, do autor Joaquim de Santa
Rita, que transporta o esprito da partilha de conhecimentos e da erudio das academias
institucionais da poca para o campo literrio, podemos assistir a quatro personagens eruditas
a interagirem em Conferncias, s quais assistiam peregrinos e romeiros e todos aqueles que
nelas quisessem participar. Esse sbio quarteto era composto por: um Telogo representante
do conhecimento religioso, dos dogmas e de toda a Histria Sagrada e Eclesistica; um
Filsofo, que alm de ser o moderador das conferncias era a voz das cincias modernas ou
Filosofia Natural; um Soldado, conhecedor do mundo, das guerras e da histria secular,
militar e herldica; um Ermito, homem religioso e conhecedor dos quatro cantos do mundo
por onde missionou durante toda a sua vida. Mais tarde, juntaram-se a estes outros dois
acadmicos: um Letrado, homem de letras e um Estudante, curioso aprendiz. Finalizaremos
com uma ltima meno a uma outra hipottica academia fictcia que surgiu em resposta
AHI, onde reunidos numa botica de Lisboa um Jarra da Corte chamado Diogo Belo, um
Cirurgio e o Boticrio decidiram tambm formar uma academia para supervisionar essas
outras academias que sapateiros, alfaiates, ferreiros e tanoeiros tanto procuravam
ansiosamente e gastavam o seu dinheiro para lerem as suas apetecidas conferncias.
O que une todas estas obras referidas o seu objectivo de compilao do
conhecimento, em estilo enciclopdico, numa tentativa de explicar o mundo, o universo e a
vida. Elegem a Histria e a Filosofia Natural ou Cincia como os dois grandes pilares do
saber, a desenvolver e a partilhar, num esforo comum contnuo em que todos podiam
participar. Um movimento de divulgao e vulgarizao do saber num espao universal das
letras com a caracterstica especial de os seus autores terem transportado regras de
sociabilidade e padres de comportamento para as suas obras, recorrendo quase sempre ao
dilogo erudito.
1 SILVA, Inocncio Francisco da, e ARANHA, P. V. Brito, Dicionrio Bibliogrfico Portugus(..), Tomo 16,
pp. 444-445. Sobre o autor Lima Bezerra ver tambm: ARAJO, Ana Cristina, A Cultura das Luzes em Portugal
Temas e Problemas, 2003, p.74 e p.83.
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3. A Academia dos Humildes e Ignorantes
Prope-se aqui abrir as portas de uma academia especial, onde a inspirao literria
transportou os cdigos da sociabilidade intelectual para um espao materializado no mundo
imaginrio do orbe das letras. Arquitectando, neste caso particular, uma academia quimrica,
especialmente dedicada instruo dos desfavorecidos, utilidade pblica e em ltima
instncia felicidade do povo, representao fictcia de um espao social e intelectual da sua
poca.
O sbio e o pblico, o autor e o leitor, a ideia materializada na escrita e a sua
interiorizao atravs da leitura. nesta dualidade, possibilitada pela existncia de uma
linguagem escrita, que as ideias e o conhecimento se espalharam ao longo da histria pelas
mentes mais atentas. O sculo XVIII assistiu a uma revoluo intelectual que perdurou at aos
dias de hoje, numa escala pequena, o discurso do homem ilustrado percorreu as mentes dos
homens, mesmo a dos menos letrados, pois se as taxas de analfabetismo eram enormes nesta
poca, a capacidade de falar e a partilha de ideias por via oral ter sido um poderoso veculo
de informao. A leitura de um folheto num local pblico aniquilaria a incapacidade de
adquirir conhecimentos por parte de um pblico iletrado, eliminando assim a certeza
defendida por alguns autores de que os ideais iluministas apenas circulavam num restrito
grupo de intelectuais1.
O sculo das luzes em Portugal, ao ritmo da Europa, foi palco de uma proliferao de
ttulos, sobretudo com o desenvolvimento do conhecimento cientfico e a respectiva
fragmentao dos diversos ramos do saber, que tornou os contedos literrios cada vez mais
especializados em detrimento de assuntos genricos. Este fenmeno deve ser enquadrado no
movimento filosfico das luzes e na afirmao da Repblica das Letras, que despertou um
certo esprito intelectual da poca, expresso num desenfreado amor pelo conhecimento, pelas
letras e pelas artes, que inspirou o uso da pena e nos deixou os mais diversos registos do gnio
humano.
Ao estudarmos a histria intelectual portuguesa do sculo XVIII, vemos uma histria
tendencialmente direccionada para personagens pertencentes a um grupo social especfico,
como que se o intelecto humano fosse um exclusivo das classes favorecidas ou andasse
1 Esta leitura nas ruas era algo comum na poca e contribuiu fortemente para a divulgao das ideias escritas.
Ea de Queirs, ponderando a questo da leitura no sculo XVIII, falou no desaparecimento do leitor, enquanto
indivduo; e em lugar dele, acrescentou Ea, o homem de letras viu diante de si a turba que se chama o
pblico, que l alto e pressa no rumor das ruas. DOMINGOS, Manuela, Livreiros de Setecentos, Biblioteca
Nacional de Lisboa, Lisboa, 2000, p.9.
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sempre aliado riqueza patrimonial. A imagem que se vai passando aquela de eruditos
aristocratas, nobres ou abastados burgueses, homens do clero ou da corte, como nicos
depositrios da erudio, protagonistas de uma aliana elitista entre o poder e o saber. Mas
margem destas elites sabemos que viveram eruditos entre o povo, que subtilmente nos
deixaram as suas obras nas sombras das grandes modas, ao vapor das tipografias menores, na
corrente da revoluo tipogrfica e livreira, vendo as suas ideias ganharem forma, veiculando
as suas interpretaes da sociedade, do conhecimento e da poca. nesse mar de letras que
podemos encontrar as mais curiosas obras, de autores que por se terem escondido atrs de
pseudnimos, por anonimato premeditado, ou porque nunca tiveram o apangio da fama
foram abraados pelo esquecimento.
O estudo desta obra tem um duplo interesse, por um lado d-nos a conhecer uma
academia fictcia dentro do esprito da poca, uma representao sociolgica literria de um
grupo de intelectuais que atravs do dilogo partilham ideias com um outro grupo sociolgico
composto por homens incultos, iletrados, humildes e ignorantes. Por outro lado a AHI afirma-
se como um compndio do saber, assumindo uma forma enciclopdica pretende nas suas
pginas encarcerar todo o conhecimento.
A obra desenhando assim a sua uma academia imaginria, numa encenao fictcia vai
revelando esses eruditos acadmicos que nas suas conversas partilham ideias, ensinam as
matrias fundamentais, contam histrias de viagens longnquas, falam dos encontros que
tiveram com outros eruditos estrangeiros. Esses dilogos preenchiam assim as conferncias da
academia, conferncias essas que ocorriam de porta aberta para todos, mas sobretudo para o
homem inculto, para o trabalhador, para os modestos e para os ignorantes que procuravam
ilustrar-se. A ingenuidade desta oferta gratuita de conhecimento, pode levar a reflectir sobre o
interesse comercial de vender essas ideias. necessrio compreender que a pertena a uma
academia, tem uma importncia muito especial para a poca, representando um claro sinal de
estatuto social, ora a AHI, por um lado oferecia esse status a todos, mas por outro tenta
tambm banalizar o que na poca era visto como algo apenas acessvel a uma pequena elite
ilustrada.
A pedra angular de toda a investigao e pesquisa realizada assentou no texto da obra,
que abriu caminhos para decifrar diversas pistas sobre a origem da academia, sobre o seu
autor e sobre as suas fontes. O que possibilitou um enquadramento da obra num espao e
tempo especficos. Durante o processo de investigao foi encontrado um documento de
crtica directa AHI, impresso em 1758, que deu uma nova dimenso obra e trouxe
informaes de sublime interesse para o seu estudo, desde o preo a que os seus folhetos eram
vendidos ao seu sucesso comercial entre o pblico. Foi tambm este documento que obrigou o
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autor a sair do anonimato em defesa da veracidade das suas palavras, permitindo igualmente
aprofundar o seu trao biogrfico.
Independentemente do carcter ficcional da obra, este estudo ser iniciado com uma
breve apresentao da sua academia, dos seus objectivos, dos seus membros, das suas regras,
do funcionamento e dos contedos das suas conferncias. Posteriormente, ser realizada uma
anlise da obra em concreto, da sua estruturao, do seu contedo literrio, histrico e
cientfico, da sua evoluo ao longo do tempo, da sua publicao e impresso. Dividindo o
seu percurso em dois momentos claramente distintos, o antes e o depois do anonimato do
autor. Em seguida, investir-se- na difcil tarefa de conhecer as entidades envolvidas na
produo da obra, com base em algumas pistas espalhadas, sero apresentados nomes que de
uma forma directa ou indirecta estiveram associados AHI, desde potenciais membros da
academia ao enigmtico Frei Joaquim de Santa Rita, nico autor conhecido. De destacar que
existem diversas referncias AHI como sendo uma academia que existiu verdadeiramente.
O terramoto de 1755 tambm abalou os pilares do conhecimento e as fundaes da
Repblica das Letras, inmeras bibliotecas ficaram perdidas para sempre, e as tipografias de
Lisboa pararam. Curiosamente aps esta calamidade que aparecem em Portugal diversas
obras deste carcter de compilao do conhecimento, como que tentando salvaguardar numa
s obra todo o conhecimento, toda a histria e cincia conhecidas. Pedro Norberto de Aucourt
e Padilha, escrivo na Mesa do Desembargo durante o reinado de D. Jos, descreve-nos este
sentimento no prologo da sua obra intitulada Raridades da Natureza e da Arte divididas
pelos quatro elementos publicada em Lisboa no ano de 1759:
Se Ccero chamou morte do homem ociosidade, tambm com mxima Catlica se pode
chamar remdio da vida o emprego literrio, porque a recreao dos livros uma poltica
crist para a conformidade dos males, e toler-los com semblante alegre, herica indstria
para ser feliz, sem depender da fortuna. O Terramoto, que me arruinou os bens, no s
sepultou muitas vidas, mas tambm as oficinas da sabedoria: dificultou com a perda das
Bibliotecas os meios para a lio, e no moderou nos nimos o dio para a mordacidade; no
que novamente fica confirmado ser filha da ignorncia.
Nestas palavras podemos ver reflectido o esprito que movia os homens de letras da
poca, apelando aco da escrita contra o cio e contra o mal, mantendo sempre o nimo
mesmo nos momentos tenebrosos, criticando a mordacidade dos que se movem contra a
Repblica da Letras. A ttulo de curiosidade Santa Rita conhecia as obras de Aucourt Padilha,
ao qual faz referncia.
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importante perceber que o iluminismo se foi construindo sobre uma rede de
contactos internacionais, trocas de correspondncias, circulao de publicaes, livros e
folhetos, viagens e encontros pessoais entre intelectuais. Sem cair nas discusses
historiogrficas sobre o movimento das luzes na Europa e fora dela, sobre a justificao ou
no de diversos tipos de iluminismo, de um iluminismo catlico, ibrico ou portugus,
pretende-se apenas deixar claro que a Academia dos Humildes e Ignorantes uma obra
iniciada em 1758 recheada de preceitos e ideias das luzes, no porque o seu autor dissertou
sobre os princpios desse pensamento mas porque os meteu em prtica. Poderamos quase
afirmar que a sua obra um caso prtico de iluminismo, uma materializao dessas ideias,
audaz e mordaz, brutal e singela. A cultura do seu autor inegvel, no s conhecia autores e
obras estrangeiras, como as Mmoires de Trvoux, ou o Journal des Savants, como a obra de
intelectuais portugueses como Jacob de Castro Sarmento. Contudo necessrio olhar para
obra luz da sua poca, o autor afirma-se aristotlico, tece crticas ao povo Judeu, e alimenta
algumas crenas populares sobretudo sobre bruxarias e monstruosidades da natureza, contudo
e ao mesmo tempo, tece elogios ao uso da razo, demonstrando a um forte entusiasmo pelos
avanos da moderna filosofia natural, e sobretudo pretende compilar todo o conhecimento
oferecendo-o a uma classe desfavorecida.
No nos interessar neste estudo cair nas discusses sobre a origem e geografia do
Iluminismo, se este teve origem na Inglaterra de Newton, Bacon ou Locke ou nos filsofos
franceses fundadores da Republica das Letras, apenas nos interessa o carcter internacional do
movimento das luzes, sabendo que diversos pensadores para ele contriburam, de diversas
formas e em diversos locais, e todas essas contribuies tiveram efeitos localizados e muitas
vezes divergentes. Sabemos tambm que o iderio das luzes teve as mais diversas
manifestaes, especificidades regionais e temporais, o que torna extremamente complexa a
compreenso dos seus verdadeiros impactos nos diversos contextos polticos e sociais.
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3.1. As conferncias da academia: temas e fontes
Aps o terramoto de 17551 que abalou a capital do reino portugus, durante o reinado
de D. Jos I, assistiu-se, no ano de 1758, ao nascimento da Academia dos Humildes e
Ignorantes2. Uma academia de homens que se consideravam eruditos mas tambm modestos e
ignorantes, que durante as suas conferncias e reunies mantinham a porta aberta para todos
aqueles que sendo tambm humildes, pobres e iletrados, os quisessem ouvir e com eles
aprender. S pelo nome da AHI podemos antever algum atrevimento por parte do seu criador,
em pleno sculo das Luzes, sculo de intelectuais iluminados, de elites sociais, de academias
eruditas e altamente patrocinadas, apareceu uma academia do povo, dirigida aos mais
desfavorecidos, que apesar de tambm desejarem participar na grande viagem do
conhecimento no possuam meios para tal proeza. Foi assim criada uma obra para aqueles
que no possuam bibliotecas privadas, nem tempo para usufrurem das pblicas,
condicionadas pelas suas obrigaes laborais ao contrrio de certas elites. Uma obra que
pretendia encerrar em si uma smula do saber dedicada ao homem comum, num verdadeiro
esprito do Iluminismo, encarna um papel de laicizao do conhecimento. luz da razo,
todos os homens seriam iguais, a sua condio social, o seu credo, sexo, ou raa, no
poderiam ser indicadores da sua motivao de aprender. luz dessa mesma razo qualquer
esprito poderia ser iluminado. Esta ideia de democratizao do saber aliada s noes de
igualdade, dilui-se num certo elitismo existente nas academias que proliferaram durante o
sculo XVIII por toda a Europa. Com o desenvolvimento da cincia e do conhecimento, os
mtodos e disciplinas racionalistas tornaram-se cada vez mais exigentes, excluindo aqueles
que partida no teriam condies para serem iluminados. Esta proposta de levar um resumo
do conhecimento a todos, e principalmente aos mais desfavorecidos, atravs da criao 1 A aluso ao terramoto de 1755 como a causa da criao da academia refora a ideia fantstica de que depois de
uma catstrofe nascera, como que por vontade divina, aquele encontro de eruditos, do caos nascera a luz. 2 A Academia dos Humildes e Ignorantes encabea o ttulo de uma obra onde quatro personagens eruditas, a
saber um telogo, um filsofo, um ermito e um soldado, que se reuniam para partilharem os seus
conhecimentos com os romeiros e carenciados que por ali passavam. A academia comea por apresentar a sua
obra como sendo utilssima para todas as pessoas eclesisticas e seculares que no tivessem bibliotecas prprias,
nem tempo para frequentarem as pblicas, uma Suma Excelente de toda a Teologia Moral, Filosofia Antiga e
Moderna, Matemtica, Direito Civil e Cannico, de todas as Cincias, Artes Liberais e Mecnicas. Seria assim
um compndio brevssimo de todas as notcias do mundo, das suas partes, imprios e reinos, cidades e vilas,
castelos e fbricas notveis, costumes, ritos e leis. Da vida de Cristo, de todos os Santos e Santas e venerveis
mais conhecidos. De todos os Papas, imperadores, reis e prncipes, desde o princpio do mundo at ao presente.
De toda a Histria Sagrada, eclesistica e secular. De todos os sucessos admirveis e esquisitos, de todos os
artefactos, mecanismos antigos e modernos. Enfim uma ode ao saber e a todo o conhecimento.
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fictcia de uma academia, d-nos uma primeira ideia do mago fantstico desta obra e do
intuito do seu autor, que colocando personagens a dialogar, bem ao estilo platnico, concebeu
um ambiente de sociabilidade intelectual simulado.
A primeira conferncia da AHI, revela claras referncias cnicas quanto ao local, data
e personagens envolvidas na aco, iniciada com as seguintes palavras:
No stio de Nossa Senhora da Consolao, recreio delicioso entre a Lourinh, e Peniche, se
juntaram no dia 20 de Setembro, entre muitas pessoas, um Telogo, um Filosofo, um
Ermito, e um Soldado1.
() depois de praticarem nos graves danos da murmurao, e a necessidade da Eutraplia
nos que viviam (como eles) solitrios naquele sitio desde o terramoto, assentaram que, para
evitar aquele dano, e poderem mutuamente instruir-se no miservel estado, em que estavam,
se juntassem com os romeiros, que ali fossem, uma vez cada semana, e cada um dissesse o
que sabia na matria, que primeiro ocorre na Conferencia, e os mais que tivessem com ela
semelhana.2
Existe uma clara inteno por parte do autor em enquadrar no espao e no tempo a
origem da academia, encaixando-a num cenrio real e actual da poca. Existe de facto um
local chamado monte da Nossa Senhora da Consolao, junto actual praia da Consolao na
zona de Peniche, onde est edificado o Forte da Consolao, forte esse que foi construdo em
1641 como parte integrante de um projecto de proteco das linhas costeiras do reino no
perodo da Restaurao.3 De facto existem ao longo da obra diversas referncias ao Forte
como local das conferncias dos nossos acadmicos, na Conferncia 28 do tomo I podemos
ler: Na manh do dia treze, juntos no Forte com muitos Romeiros, que chegaram na noite
antecedente, continuou o Soldado a vida de D. Fernando ()4. E ficamos tambm a saber
que o Forte onde se reunia a academia tinha vistas para o mar:
No dia dois de Novembro, convidados os Acadmicos da excelente temperie do ar e sol,
antes da hora costumada foram gozar-se de uma e outra coisa no Forte, donde descobriram
trs navios com as bandeiras largas, e ao longe cinco. Com um culo intentaram conhecer de
que nao eram e seguiu-se a disputa sobre as bandeiras, que insensivelmente deu princpio
1 [AHI, T1, C1, p.1]. 2 Idem. 3 In site oficial da Cmara Municipal do Concelho de Peniche: http://www.cm-peniche.pt. 4 [AHI, T1, C28, p.217]. Ver tambm na conferncia 34 do mesmo tomo: Depois de cearem, se juntaram no
Fortep.265.
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Conferncia ().1
() porque bem pode uma trovoada como a de dia de Nossa Senhora das Neves no ano de
1759 estar sobre Lisboa lanando coriscos, como aquele o fez no stio de Penha de Frana, e
serem os troves imediatos aos relmpagos neste stio da Consolao, como ento os vimos,
no obstante distarmos de Lisboa onze lguas (...). 2
O terramoto de 17553 enquanto motivo para o estado de desgraa em que todos se
encontravam ali refugiados naquele stio, serve tambm para dar actualidade Academia, que
a poucos anos da sua ocorrncia os seus efeitos ainda estavam bem presentes. O terramoto
um assunto recorrente nas conferncias da academia ao longo de toda a obra. Sabe-se que
aps o terramoto de 1755, que arrasou a cidade de Lisboa, milhares de pessoas procuraram
refgio nos arredores da capital, tendo sido acolhidas por conventos, mosteiros, e edifcios
militares. Vemos ento os nossos eruditos que naquela situao de misria causada pelo
terramoto, decidiram fundar uma academia para aquelas gentes infelizes e solitrias, com o
objectivo de discutir e avaliar o estado da situao em que se encontravam, de sorte, que os
humildes, e ignorantes que os ouvissem, ficassem instrudos por este fcil meio; e com
notcias para comunicarem a seus filhos, aos quais, por humildes, e pobres, no podiam
aplicar aos estudos.4 As primeiras conferncias focam-se exactamente em tentar explicar a
origem e funcionamento do planeta, partindo de uma perspectiva bblica passando para uma
viso mais cientfica sobre o seu funcionamento e complexa composio geolgica
procurando elucidar as causas dos terramotos.
Os membros da academia eram inicialmente quatro homens eruditos, a saber um
Telogo, um Filsofo, um Ermito e um Soldado. Quatro alter-egos do autor, que dado o
vasto leque de temticas abordadas, bem poderiam ter sido personagens dirigidas
independentemente por diferentes autores. Cada personagem assumia a direco de uma rea
do saber, mas a participao na academia no se esgotava nestes quatro ilustrados, pois a sua
porta aberta a todos os que nela queriam participar, deram lugar participao de diversos
curiosos e romeiros, que partilhavam tambm as suas experincias, intervindo nas
conferncias de forma pertinente e com total liberdade para colocar questes e apresentar
1 [AHI, T3, C36, p.281]. 2 [AHI, T4, C4, p.27]. 3 Sobre o terramoto de 1755 ver a obra: ARAJO, Ana Cristina, O Terramoto de 1755: Lisboa e a Europa,
Clube do Coleccionador dos Correios, 2005. 4 [AHI, T1, C1, pp.1-2].
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problemas. Numa segunda fase da obra, juntam-se aos quatro eruditos dois novos membros,
um Letrado, e um Estudante.
As leis pelas quais se rege a academia, so enunciadas logo na primeira conferncia
pelo ilustre Filsofo:
Basta, disse o Filsofo, observemos as leis desta Academia: v.m.[referindo-se ao Telogo]
s diga o que pertence Teologia, que podem, e devem saber todos; eu a Filosofia, que
pertence aos mesmos, o nosso Ermito, que tem visto o mundo, o que viu nele, e o Senhor
Soldado as guerras de todas as Monarquias.1
O princpio regulador do funcionamento da academia ento este, que cada um trate
apenas das matrias que domina enquanto autoridade do saber na sua rea. Ocasionalmente,
no decorrer das conferncias acadmicas instauram-se consensualmente novas regras, que
nascem dos dilogos e discusses dos nossos eruditos, como aconteceu por exemplo na quarta
conferncia, que pela extenso do discurso do Ermito que impossibilitava a participao dos
outros, ficou decidido que:
() fique sendo lei desde hoje, que no princpio de cada Conferncia, dareis conta de
uma parte do mundo [dirigindo-se ao Ermito], ou do que nela vos falta por dizer, para
assim poderem os mais contar o que tem sucedido em todo o mundo, e ficar sendo mais doce
esta pratica.2
A AHI apresenta-se assim com uma caracterstica fundamental que a distingue das
outras da sua poca, era uma academia dirigida por eruditos mas que mantinha a porta aberta,
deixando que romeiros e homens humildes participassem nas suas conferncias. Afasta-se de
certa forma da sociabilidade intelectual elitista caracterstica da poca, em oposio s
academias de homens nobres e aristocratas, esta era uma academia para homens humildes e
pobres, para o homem comum, o que com um certo toque de crtica social, revela um carcter
inovador e bastante arrojado para poca.3 Talvez por isso o autor tenha optado pelo anonimato
1 [AHI, T1, C1, p.4]. 2 [AHI, T1, C4, p.28]. 3 Note-se no entanto que para se ser um acadmico, por exemplo da Academia Real da Histria, no era
obrigatrio pertencer alta nobreza, entre os membros desta academia encontravam-se indivduos pertencentes
nobreza, ao clero e tambm ao terceiro estado. A ideia que aqui se pretende passar que o acesso a estas
academias era extremamente reservado. Sobre a estratificao social da Academia Real da Histria ver: MOTA,
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anonimato durante os primeiros tomos da obra. Mas o proposto pela academia vai ainda mais
longe, pois as suas conferncias ambicionam edificar um verdadeiro compndio de todo o
saber, da Histria Arte, da Cincia Teologia, do Direito Cultura dos povos, do Mundo e
da Natureza. De inspirao enciclopdica, bem inerente ao esprito do Iluminismo, pretendia
igualmente ser uma obra de fcil leitura, permitindo que todos a pudessem compreender,
assumindo assim um papel educativo do povo, de ilustrao da nao, mxima dos homens
das luzes. Contudo, deve ser realada a forte presena de um esprito eclesistico em toda a
obra, conjuntamente com uma certa ligao Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho,
possivelmente incutida pelo percurso pessoal do autor.
tambm importante referir a permanente preocupao do autor em tornar o texto
didctico e interessante. Existiu um certo cuidado na fidelizao dos leitores, os temas eram
deixados em suspense de uma conferncia para a outra, abrindo o apetite para descobrir o
desenlace das histrias que eram contadas. Um outro detalhe igualmente interessante, presente
ao longo da obra, o facto de que sempre que o autor transcreveu um texto em latim, teve a
preocupao de logo de seguida o traduzir literalmente para portugus, ou de o explicar
integralmente. Esta no era uma prtica comum entre os autores da poca, so inmeras as
obras que usam o latim como se fosse compreendido por todos, passando deste para o
portugus e vice-versa sem qualquer inquietao de esprito, limitando assim o acesso
essncia dos seus textos pelo comum dos mortais, pois se na poca a capacidade de ler era
diminuta entre a populao, a capacidade de ler em latim o seria muito mais. Esta
simplificao erudita do conhecimento demonstra uma perfeita sintonia, por parte do autor,
com a filosofia do esclarecimento, demonstrando a sua preocupao em no criar entraves
compreenso do seu texto.
A publicao dos tomos da AHI, divide-se em duas fases distintas, a 1 fase
constituda pelos seis primeiros tomos, de autor incgnito, apenas identificado pelas iniciais
D. F. J. C. D. S. R. B. H., que tero sido impressos entre 1758 e 1762, nas oficinas de Incio
Nogueira Xisto e de Francisco Borges de Sousa. Tambm na oficina de Incio Nogueira
Xisto, foi impresso em 1764 o ndex das Coisas mais Notveis de que tratam os Seis Tomos
das Academias dos Humildes, e Ignorantes, que consiste basicamente numa compilao,
publicada em separado, de todos os ndices constantes naqueles tomos. Os dois ltimos
tomos, VII e VIII, representam a 2 fase da obra, de autoria declarada de Frei Joaquim de
Santa Rita, impressos entre 1763 e 1770, pelo impressor do Santo Ofcio Miguel Manescal da
Costa. Do tomo I ao VI, temos 52 conferncias por tomo, de oito pginas cada, impressas Isabel Ferreira da, A Academia Real da Histria: os intelectuais, o poder cultural e o poder monrquico no sc.
XVIII, Coimbra, 2003, pp. 106-111.
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25
separadamente. Nos dois ltimos volumes, o nmero de conferncias por tomo passa a ser de
40, com 12 folhas cada, cada conferncia tambm impressa separadamente, e no final de cada
tomo um ndice alfabtico, de dimenso inferior relativamente aos impressos em 1764 para os
tomos anteriores.
A diviso da obra em duas partes justifica-se por diversas razes, alm de uma
mudana na organizao e estrutura dos tomos, ocorreu uma sbita reivindicao da autoria
da obra, uma subtil alterao do ttulo, uma mudana de impressor juntamente com uma
exclusividade de impresso, e por fim uma total mudana no estilo da escrita, presente na
organizao e desenvolvimento dos temas abordados. O autor ao sair do anonimato parece
agora naturalmente mais preocupado com a qualidade da sua obra e dos temas abordados,
patente no notvel aumento da qualidade da escrita e tratamento dos temas. Os dois ltimos
tomos so agora mais bem elaborados, de certa forma mais eruditos, onde so feitas mais
referncias a autores e outros intelectuais da poca. A componente dialogstica sempre
mantida ao longo de toda, com alguns momentos de menor participao das personagens
quando o autor trata de temas mais longos e complexos. No ltimo tomo, de realar que as
personagens comeam mesmo a falar de aspectos da sua vida pessoal, referindo nomes de
pessoas com as quais tero convivido e partilhado experincias, o que abriu tambm caminho
para estudar uma possvel rede social do autor, sabendo que este era o interlocutor de todas as
personagens, e partindo da ideia de que muitas das histrias que relata possam ter sido
baseadas na sua vida pessoal ou nas experincias pessoais de outros com quem ter partilhado
ideias, as diversas referncias permitem estabelecer hipotticos relacionamentos pessoais.
O vasto leque de temas abordados ao longo dos seus 8 volumes publicados, com cerca
de 460 pginas cada um, permitiu a realizao de uma anlise exaustiva do seu contedo, e
das suas fontes e referncias. No entanto pela dimenso enciclopdica da obra, e pela
imensido de temas e assuntos abordados, decidiu-se trazer para aqui apenas os que numa
primeira anlise ilustram melhor o gnio literrio do seu autor. tambm importante referir,
que no foi possvel identificar ou conhecer a origem de muitas das referncias e pistas
suscitadas pelo texto da obra, no obstante sero aqui mencionadas como fonte de informao
para outros estudos futuros.
O primeiro tomo, comea por tratar de uma autntica miscelnea de temas, desde a
gnese bblica do mundo at ao funcionamento do sistema solar e da teorias de Coprnico,
passamos por experincias agrcolas, pela geologia da terra, pelo funcionamento do meio
ambiente natural. So contadas histrias de lugares remotos do mundo, da ndia frica,
chegam-nos notcias dos seus costumes e hbitos alimentares. contada a histria das
civilizaes antigas, do Egipto ao grande imprio Romano. So explicadas as diversas formas
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de governo dos reinos, da monarquia democracia, dando exemplos do seu funcionamento e
enunciando os diversos sistemas implementados nos pases europeus. A meio do primeiro
tomo comea-se j a notar uma certa tendncia para contar a Histria eclesistica e secular de
Portugal, tendncia essa que monopoliza cerca de metade da obra, sobretudo a partir do tomo
III at meio do tomo VII. Cabe aqui realar que os estudos de Manuel de Faria e Sousa1 e do
Conde de Ericeira so as duas fontes histricas principais usadas por Santa Rita, como o
prprio o afirma, fazendo-lhes inmeras menes ao longo das suas dissertaes sobre a
Histria do reino e da Europa. Sobre o primeiro diz por exemplo:
Vs fundado no grande Historiador Manuel de Faria e Sousa no contastes o que ele
encobriu, por que escreveu em Castela no tempo de Filipe III de Portugal; e no justo que
uns ignorantes, e humildes, como somos, ignorem as verdadeiras mais constantes.2
No entanto Santa Rita elege o segundo como a sua principal fonte de Histria de
Portugal, o Conde de Ericeira Historiador nico da nossa Monarquia3. So feitas inmeras
referncias a este Conde durante toda a obra, nunca no entanto sendo possvel perceber
claramente a qual dos Condes de Ericeira se referia, mas que pela referncia feita ao primeiro
tomo da obra sobre Histria de Portugal desse conde4 podemos apontar para o 3 Conde de
Ericeira D. Lus de Menezes autor da obra Portugal Restaurado.5
Ainda sobre as suas fontes histricas, Santa Rita traduziu um excerto da obra do
excelente Historiador D. Jos Martines de la Puente no Prologo do seu Compndio de las
1 Ver por exemplo: [AHI, T2, C1, p.1] ou [AHI, T2, C2, p.9]; sobre Manuel de Faria e Sousa: poeta, historiador
e fillogo portugus, n. em Pombeiro, m. em Madrid (1590-1649); autor de Comentrios dOs Lusadas; Europa
Portuguesa; sia Portuguesa; Eptome das Histrias Portuguesas; Fuente de Aganipe (em verso). In Lello
Universal, Dicionrio Enciclopdico Luso-Brasileiro, Lello&Irmo Editores, Porto, 1986, Vol.2, p. 939.
2 [AHI, T2, C1, p.1]. 3 [AHI, T2, C1, p.2]. 4 [AHI, T2, C2, p.10]. 5 Sobre os diversos Condes de Ericeira: D. Fernando, 2 Conde de Ericeira, guerreiro e historiador portugus, n.
em Lisboa; autor de Vida e Aces de El-Rei D. Joo I (1677) e Histria de Tnger (1614-1699); D. Lus, 3
Conde da Ericeira, guerreiro e escritor portugus, n. em Lisboa; autor de Portugal Restaurado (1632-1690); D.
Francisco, 4 Conde de Ericeira, guerreiro e erudito portugus, n. em Lisboa (1673-1743); D. Lus , 5 Conde da
Ericeira, 1 Marqus de Lourial, vice-rei da ndia, n. em Lisboa em 1689 m. em Goa em 1742. Autor de:
Complemento ao Vocabulrio do Padre D. Rafael Bluteau; Suplemento ao Dicionrio Histrico de Moreri.
Traduziu a Histria de Carlos XII, de Voltaire. In Lello Universal, Dicionrio Enciclopdico Luso-Brasileiro,
Lello&Irmo Editores, Porto, 1986, Vol.1, p.857.
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historias, e descubrimentos de la ndia Oriental, etc. hasta Filipe Segundo de Portugal1
onde no final da transcrio enuncia todas as fontes histricas que utilizou nas conferncias:
Isto sobeja aos que leram pouco para lhes excitar a curiosidade, e ateno; e eu para no
errar, quando me possvel vos contarei sumariamente o que escreveram Barros, Diogo de
Couto, Gomes Banhes, Ferno Lopes, Luiz Coelho de Barbuda, Fr. Antnio de S. Romo
Monge Benedictino, Bernardino de Escalante, Fr. Gaspar da Cruz da Ordem dos
Pregadores, o M. Fr. Jeronymo Roman, Eremita de meu Pai Santo Agostinho, Marco Paulo
Veneto, Mizer Pogio, Micer Luiz de Parthema, o Licenciado Manuel Correa comentador de
Cames, Pedro Ordonhez de Zevalos na Viagem do mundo, o Tito Lvio Lusitano Manuel de
Faria e Sousa, Mariz, e D. Joseph Martines de la Puente, que por estranho, e amigo
reconciliado merece o maior crdito de verdadeiro e desinteressado. 2
Esta Histria que Santa Rita trouxe para as conferncias da sua academia sobretudo a
Histria do Reino de Portugal baseada na vida dos Reis, com algumas incurses nos
descobrimentos portugueses. A ttulo de curiosidade faz referncia s aventuras de Preste Joo
e Pero da Covilh famosos espies portugueses. Conta tambm a Histria do Reino de
Espanha, a Histria do imprio romano e toda a histria mitolgica. Numa outra vertente de
cariz mais religioso conta a Histria Bblica, Sagra e Religiosa, apoiada nos textos bblicos ou
em estudos de teolgicos. Conta tambm a Histria da vidas dos Papas, e dos Santos.
Alm da Histria, e da Teologia, outro tema central presente um pouco por toda a obra
a Cincia, ou Filosofia Natural como era conhecida na poca. O autor refere-se tambm a
esta como Filosofia Moderna a nobilssima cincia, fazendo inmeras referncias aos mais
diversos assuntos cientficos, mas tambm reflectindo sobre o que era esta nova filosofia e
sobre a condio de ser filsofo.
Tambm vos advirto que ser Filsofo moderno no ser Cartesiano; Renato Descartes foi
um grande Filsofo moderno, porm disse e escreveu muitas coisas, que nem pelo
pensamento nos passa segui-las: os modernos no seguem autor, nem escola alguma;
veneram a todas e a todos, e em todas e todos vo buscar a verdade se l a acham, e
instrumentos ou graves demonstraes com que a mostrar, de sorte que o Filsofo moderno
Aristotlico, Cartesiano, Neutonista, etc., Tomista, Scotista, Edigiano, Mdio, e nada
disto , porque a nenhum destes defende nem segue.3
1 [AHI, T8, C12, p. 140]. 2 [AHI, T8, C12, p. 141]. 3 [AHI, T3, C18, p. 143].
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tambm neste ponto que podemos ver que Santa Rita no era apenas um ingnuo
curioso, defendo que o verdadeiro filsofo estuda e reflecte as diversas teorias e doutrinas e
nunca se tornando num seguidor ou defensor delas, porque o objectivo ltimo sempre a
procura da verdade e esta no escrava de nenhuma escola de pensamento. Continua este
ponto advertindo para a dificuldade de compreender os princpios fundamentais da cincia,
que inicialmente at poderiam parecer enfadonhos, mas a sua aprendizagem era fundamental
para mais tarde se abrirem as portas para aquilo que era a coisa mais til, agradvel, divertida
e extremamente necessria. Traando assim o esprito iluminista da sua obra, em nome da luz
e da razo, da verdade, estes humildes e ignorantes atravs do ensino da academia iriam ser
iluminados e salvos da cegueira em que viviam.
Advirto-vos que agora no princpio no haveis de achar tanto gosto no que ouvireis,
porque, ainda que sejam coisas palpveis e claras, so princpios, sobre os quais assentam
depois as mais gostosas, divertidas, e pasmosas experincias, e notcias; por isso vos
recomendo tomeis com gosto grande as primeiras lies, porque todas depois vos ho de
servir para entenderes bem o que toda a vida vos h-de alegrar o corao, de sorte que
sempre confessareis que nunca empregastes o tempo em coisa to til, gostosa, divertida, e
sumamente necessria; em fim direis que viveste sempre cegos, e que s este ensino vos abriu
os olhos do corpo, e do entendimento. 1
Santa Rita revela que tudo o que ensinar na AHI ser fiel s doutrinas ensinadas pelos
padres da Congregao do Oratrio. Apela necessidade de adquirir instrumentos e
equipamentos para a realizao de experincias fundamentais para a compreenso da natureza
e avano do conhecimento, referindo por exemplo os investimentos realizados pela
Universidade de Bolonha em mquinas necessrias para a realizao dessas experincias.2 Em
Portugal diz que os padres da Congregao do Oratrio, os Clrigos Regulares, os Cnegos
Regrantes, e o Colgio dos Ingleses todos se dedicavam ao estudo e ensino desta nova
filosofia. Referindo tambm que o rei D. Joo V mandou vir de Frana e Inglaterra preciosas
mquinas para instruo da Corte3, oferecendo-as ao Colgio de Nossa Senhora das
Necessidades de Lisboa, frequentado por fidalgos, nobres e outros os curiosos que
frequentavam estas aulas todas as semanas para recrearem-se no incomparvel divertimento 1 [AHI, T3, C18, p. 144]. 2 [AHI, T3, C18, p.138]. 3 Banha Andrade no seu estudo A Reforma Pombalina dos estudos secundrios (1759 1771), faz tambm
referncia a este facto, citando esta mesma conferncia: [AHI, T3, C18, p.138].
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que eram as experincias cientficas.
Faz uma interessante apreciao do estado da cincia na Europa, e a adeso do povo a
esta nova cincia. Dizendo que em Frana no existia um prncipe, fidalgo, nobre, mecnico,
plebeu, mulher, nem mancebo de qualquer estado, que no fosse um bom filsofo.
E quase o mesmo se passava em Inglaterra, e tambm em Itlia e Alemanha. Em Espanha
estava a comear mas com grande fora, no entanto, refere o autor com agravo, em Portugal
s na Corte se verificava essa adeso ao conhecimento, fora dela s por especial fortuna,
fortuna essa que tambm eles tinham na AHI onde quis Deus com o terramoto trazer-nos
este insigne Filosofo, que aprendeu em Frana, Itlia, e ultimamente, por ocupar bem o
tempo, na Congregao do Oratrio de Lisboa, onde (diz ele) ouvira a melhor Filosofia
moderna Cptica, isto , que s busca a verdade sem paixo por autor, nem sistema algum
()1 Preocupa-se em dizer que a Igreja Catlica de Roma em nada se ope a esta cincia,
muito pelo contrrio, e que a Fsica e Metafsica de Aristteles, so as origens da Cincia, e
que apesar de terem sido proibidas no sculo XIII pela Igreja, isso eram coisas do passado.
Assume tambm uma posio de homem religioso perante a Cincia, onde esta ltima seria
sempre um olhar para a obra de Deus, uma procura pelos segredos que com o tempo foram
esquecidos pelo homem. Faz referncia s experincias da Academia Real das Cincias de
Paris e s suas memrias publicadas no ano de 1713, prosseguindo com uma interessante
definio do que era a Fsica:
Fsica ou Filosofia Natural (disse o Filosofo) uma cincia que trata de todas as coisas
naturais, dando a razo e apontando a causa de todos os efeitos ordinrios e extraordinrios
que vemos com os nossos olhos. Trata dos cus, dos astros e dos meteoros, declara qual seja
a causa das chuvas e dos ventos, a origem das mars e das fontes. Trata de cada hum dos
elementos e das suas propriedades. Enfim, tudo quanto temos na terra objecto desta
curiosssima e admirvel cincia, merecendo-lhe especial ateno as plantas, os brutos, e o
homem com tudo o que serve aos seus sentidos, como so a luz que nos alumia, as cores que
nos alegram, os sons que nos divertem, o cheiro e sabores que nos recreiam, e o movimento
de muitas coisas que nos admiram. Isto suposto, para se reconhecer qualquer coisa o melhor
meio examinar, e conhecer as partes de que constam todas as coisas constam de duas
partes, a que os Filsofos chamam Princpios, que vem a ser Matria e Forma. ()2
No tratamento destes assuntos, Santa Rita demonstra ser um erudito conhecedor do
estado da Cincia e atento aos seus avanos, principalmente em Frana, conhecedor, como j 1 [AHI, T3, C18, p.139]. 2 [AHI, t3, c19, p.145].
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referido, das memrias da Academia Real de Cincias de Paris, mas tambm de obras como o
Journal de Savants s quais se refere como sua fonte1 ou s Mmoires de Trevoux2.
(...) eu tenho lido as obras da Academia Real das Cincias, as memrias de Trevoux, e
quase todos os livros de Filosofia natural, chamada moderna(...)3
Mas atento tambm ao que se escrevia em Portugal, e sobre estes assuntos da cincia
faz diversas referncias Recreao Filosfica de Teodoro de Almeida, obra contempornea
e de mbito semelhante AHI. Por exemplo falando novamente sobre mquinas e
instrumentos de experincias refere que estampas delas trazem muitos livros Franceses e a
Recreao Filosfica4, lamentando o facto de a AHI no possuir nenhumas mquinas5 para
realizar experincias e nem estampas para mostrar, podendo apenas recorrer-se das palavras
para descreve-las.
Tratou tambm de um problema bastante actual para na poca inerente aos
desenvolvimentos que se assistiam no campo cientfico. A problemtica da nomenclatura
cientfica, como o autor o afirma, que pela novidade das contastes descobertas existiam
muitas palavras e nomes novos, muitos deles no existentes em Portugus, aos quais eram
dados diminutivos, mas que muitos modernos abominavam optando pelo latim.
Transportando esse problema para a sua academia, decidiu resolv-lo simplificando o
conhecimento de forma a torn-lo mais acessvel por todos, que mais uma vez expressa o seu
sentido crtico desmarcando-se do elitismo erudito:
() ns porm que somos uns ignorantes, e no temos, como tais, que temer censuras de
pouco polidos para melhor nos explicarmos e percebermos, chamamos ar ao ar grosso, e ao
1 Referncia ao Le Journal des Savans, posteriormente intitulado Journal des Savants, como fonte do estava a
escrever: [AHI, T3, C20, p.165]. 2 A respeito de uma dissertao sobre os efeitos das pedras gatas na sade termina com a opinio dos filsofos
modernos sobre o assunto referenciando nas Mmoires de Trvoux: O Reverendssimo Padre D.Thomaz
Mangeart Monge de S. Bento da Congregao de S. Vannes, e Antiqurio do Duque imprimiu em Bruxelas no
ano de 1753 uma doutssima dissertao a respeito deste fenmeno, que muitos louvam os padres de Trvoux
nas memrias do mesmo ano. [AHI, T7, C31, p. 368]. 3 [AHI, T4, C3, p.17] 4 [AHI, T3, C49, p.389]. 5 Ainda sobre mquinas, e na mesma conferncia referenciada acima, faz referncia aos artfices portugueses
Bento de Moura e Manuel ngelo Vila que reduziram a mquina pneumtica e melhoraram o seu funcionamento
e facilidade de utilizao, tendo com isso sido bastante reconhecidos nos reinos estrangeiros.
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ar subtilssimo chamamos arzinho.1
Santa Rita conferiu obra um carcter internacional, ou universal, sempre presente,
expresso pelas inmeras referncias tanto a entidades estrangeiras, como aos mais diversos
lugares do mundo. Compreender e dar a conhecer este mundo era fundamental, e tambm um
dos temas que mais curiosidade despertava nos leitores, vidos em ouvir essas histrias de
lugares longnquos ou de saber o que se passava nos outros reinos da Europa. E Santa Rita
alimenta esse ensejo, principalmente com histrias do Oriente, sobretudo da ndia e China,
mas tambm das Amricas, sobretudo do Brasil, e dos territrios portugueses da frica,
Moambique e Angola. Pelas palavras dos diversos eruditos da sua Academia, d a entender
que possua conhecimentos profundos e actuais, talvez fundados na experincia pessoal, e
troca de impresses com missionrios destacados, sobretudo da sia Portuguesa. Os temas e
histrias so inmeros e ilustraremos aqui algumas que parecem interessantes no esprito da
obra. Um dos problemas que um homem do mundo, viajante e aventureiro, teria que enfrentar
nesses lugares remotos era o da comunicao. Sobre Goa, exemplifica, ora da voz prprio
Ermito, ora dizendo as ter ouvido de outros membros religiosos de Santo Agostinho, que nas
misses religiosas os problemas lingusticos, das tradues da sagrada escritura para os
dialectos e lnguas das colnias, era um verdadeiro entrave. Referindo tambm as dificuldades
de pronunciao do Portugus em Goa e em Bengala. Elevando as especificidades da lngua
portuguesa, traduzidas por exemplo no significado da palavra saudade:
A lngua Castelhana excelente e abundantssima de palavras, porm falta-lhe uma para
expressar e dizer de uma vez aquela aflio que padece uma pessoa quando est ausente de
outra, a quem ama, a que no nosso Portugus se explica admiravelmente com a palavra
saudade.2
Entre as diversas incurses pelo mundo, Santa Rita dedica largas pginas China,
colocando todas as personagens da academia a contar as suas experincias passadas nesse
Imprio. Ser possvel que o autor tenha participado em misses religiosas ou diplomticas
neste pas, ou que pelo menos tenha tido contacto com pessoas que o fizeram. Talvez tambm
tenha tido acesso a documentos relacionados com as aces diplomticas da Corte Portuguesa
na China ocorridas durante os incios do sculo XVIII, nomeadamente da misso diplomtica
1 [AHI, T3, C49, p.390]. 2 [AHI, T3, C33, p. 261].
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do embaixador Alexandre Metlo de Sousa Menezes ordenada por D.JooV para negociar com
o Imperador da China. Participaram nesta misso diversos religiosos, missionrios, e
soldados, que no dia 12 de Agosto de 1725 partiram na fragata de Nossa Senhora da Oliveira
em direco a Macau.1
H muito tempo, (disse o Telogo), desejamos saber nesta Academia notcias especiais do
Imprio da China, e agora se excita mais o nosso desejo, ouvindo a felicssima notcia de
inumerveis pessoas que no dito Imprio abraaram a nossa F Catlica, fruto do zelo dos
exemplarssimos Religiosos da Ordem dos Pregadores, que com a converso de um Eunuco,
dizem, conseguiram a converso do Imperador. A notcia to feliz que eu duvido dela, no
obstante escrever-me de Manilhas meu irmo, que repetidas vezes entra no Imprio. ()
O senhor Ermito, que tantos anos habitou naquele Imprio, podia agora dar-nos notcia de
todo, e o mesmo podiam fazer os nossos companheiros que o viram. Eu direi, (respondeu o
Soldado), porque vim de l h menos tempo, e para evitar confuso, primeiro tratarei do
Imprio, isto das suas provncias, terras e frutos, depois da gente, letras e costumes, e
ultimamente do princpio da sua Cristandade e progressos dela, at o tempo, em que vim
para Portugal.2
() porque estes (os europeus) no podem entrar no Imprio, seno como eu, e outros na
famlia de algum Embaixador, ou por companheiro de Missionrio, s com o seu fato, sem
coisa de comrcio. Assim entrei a primeira vez com o Reverendssimo Padre Mestre Fr. Joo
Salzedo, da Ordem dos Pregadores, de Manilas; e segunda, com o Excelentssimo e
Reverendssimo Senhor D. Fr. Francisco da Purificao, Bispo de Pequim, da Ordem de
Santo Agostinho; e o nosso irmo Ermito com o Embaixador Alexandre Metlo de Sousa
Menezes.3
Se o autor da AHI participou pessoalmente nessa misso diplomtica no sabemos,
contudo as suas personagens nela participaram, e fica claro que o prprio possua profundos 1 O relato desta misso encontra-se detalhadamente descrito na Abreviada Relao da Embaixada, que a
Serenssima Majestade do Senhor D. Joo V Rei de Portugal, mandou ao Imperador da China, e Tartaria Yum
Chim, pelo seu Embaixador Alexandre Metello de Souza Menezes () in MIRANDA, Francisco de S e,
Coleo e Escolha de Bons Ditos, e Pensamentos Moraes, Politicos, e Graciozos., Oficina de Francisco Borges
de Souza, Lisboa, 1779, pp.127-178. Contudo no foi possvel apurar os nomes dos frades e religiosos que
participaram nesta viagem, onde se poderia encontrar o autor Frei Joaquim de Santa Rita. Entre diversas
referncias possveis: () quando porm me preparava para vir de todo para este Reino na Nau que foi buscar
o nosso Embaixador () [AHI, T4, C42, p.334]. 2 [AHI, T4, C21, p.161]. 3 [AHI, T4, C24, pp.185-186].
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conhecimentos sobre a cultura e hbitos da China1. So tambm relatadas imensas histrias e
pormenores dessa embaixada que no vm descritos no documento acima citado em nota de
rodap. Com fico ou no, Santa Rita deixa-nos uma singular viso setecentista de um
Imprio e de uma Cultura remota e nica. Faz uma interessante referncia s elites eruditas da
China e forma como hierarquizavam os seus graus de conhecimento e a um tipo de
academias que costumavam formar entre si.
Nas casas dos poderosos so Mestres os Bacharis, e tambm h muitos estudos
particulares. Depois que alcanam o grau, ainda que seja o primeiro de Bacharel, no
reconhecem Mestre, mas sim formam entre si uma Academias, nas quais se juntam algumas
vezes em cada ms, um deles abre um livro, e d o ponto, sobre o qual todos compem, e
depois conferem as composies. 2
Como filsofo e homem erudito, no poderia falar da China e do Oriente sem
mencionar o memorvel Confcio tecendo-lhe enormes elogios:
() floresceu neste Imprio o memorvel Filsofo Confcio, ou Confuso, homem
sapientssimo e do melhor gnio e bondade de que h tradio no Oriente, nascido para bem
das Republicas de todo; porque a todos os Reinos, e Imprios intentou reformar com
admirveis Leis, para observncia da natural; teve muitos e admirveis discpulos; governou
muitos e muitos Reinos com especial pacincia para tolerar a resistncia dos brbaros (...)3
O tema da China parecia ser de extrema importncia e interesse para o pas, no s
pelos esforos diplomticos que estavam a ser feitos durante a governao de D. Joo V,
como pela presena portuguesa em Macau e o comrcio com o Oriente. Santa Rita dedica
tambm longas pginas a Macau iniciando o tema com as palavras: Falta dar-vos noticia,
(disse o Ermito) da Ilha e cidade de Macau, porta singular por onde a nao Portuguesa
introduziu a F Catlica na China (...). 4 Relatando que a situao naquele territrio no era
a melhor, o comrcio e as relaes com os chineses estavam deteriorados:
1 Nessa sua erudio alicerada sobre o imprio chins, chega mesmo a corrigir a obra do historiador Manuel de
Faria e Sousa. como erradamente imprimiram os que deram ao prelo a historia da China do grande Manuel de
Faria e Sousa. [AHI, T4, C37, p.302]. 2 [AHI, T4, C25, p.197]. 3 [AHI, T4, C27, p.212]. 4 [AHI, T4, C42, p.329].
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H poucos anos ouo queixarem-se os que l vivem, de que o comrcio est diminuto, a
fidelidade nos Chinas extinta, e que s a pobreza cresce cada dia, e consolando eu a todos,
os que me escreviam estas notcias tristes, outro amigo de toda a verdade, compadecido de
que eu gastasse o tempo e papel de balde, me mandou dizer que a Cidade cada vez est mais
rica e aumentada, e s era a verdade menos, nos que me escreviam, os quais para evitarem
mimos, se fingiam alcanados.1
O carcter internacional e universal da obra contudo no se limita China, como
referido anteriormente tambm as ndias e sobretudo Goa assunto recorrente ao longo de
toda a obra. Os eruditos da AHI, todos homens viajados, vo relatando as suas histrias um
pouco por todas as colnias portuguesas, fazendo referncias tambm aos pases vizinhos
dessas, e outras histrias chegavam tambm academia atravs de conversas com outros.2
Uma dessas histrias contada na primeira pessoa por um Romeiro chamado Joo de Cristo,
que pedindo licena para participar na Conferncia partilha na AHI as suas aventuras pela
Tartria no Oriente.
Concorrem este ano mais que nunca os Romeiros a este delicioso stio, e entre eles muitos
que fazem vid